O trabalho tornou-se, especialmente a partir do final do século XVII e princípio do século seguinte, aquilo que Dominique Méda denomina de “fato social total”. Em nossa sociedade o trabalho foi elevado a fator estruturante da organização econômica, política e social. “Ele estrutura não somente a nossa relação com o mundo, mas também as nossas relações sociais. Ele é a relação social fundamental. Está, além disso, no centro da visão de mundo que é a nossa […]”[68]. O trabalho é a roda que gira a economia e a sociedade. Uma vez que o trabalho é colocado no centro da sociedade, essa passa a se identificar como sociedade do trabalho e na qual este é o seu fundamento.
Para que as sociedades se transformassem em sociedades do trabalho, este teve que sofrer uma mutação em sua natureza. Na prática, o trabalho, reconhecido como tal pela sociedade, é a forma particular de trabalho remunerado ou mais comumente entendido como emprego. É este tipo de atividade que “se tornou a principal fonte de renda que permite aos indivíduos viver, mas que é também uma relação social fundamental […] e finalmente o meio para alcançar a abundância”[69]. Todo o ‘trabalho’, deve, portanto, ter as seguintes condições: ser remunerado, ser realizado em vista da obtenção de uma renda, ser uma atividade social e socialmente definida e mediante a qual se alcança a abundância, isto é, as riquezas.
Na verdade, é a forma particular de trabalho chamado emprego que foi projetado para o centro da sociedade industrial. Esta forma particular e historicamente curta de trabalho é a mais difundida e valorizada. Não por nada que a escassez de empregos provoca tanto frenesi em todos os setores da sociedade, especialmente no meio político. É porque seu desaparecimento coloca em xeque a estrutura inteira da nossa sociedade[70]. Tirar o emprego é o mesmo que abrir um abismo intransponível diante de nós. A crise de empregos que todas as sociedades ocidentais hoje experimentam, em menor ou maior grau, aponta para a sua centralidade nestas sociedades, mas, historicamente, também denuncia, a nosso ver, um “reducionismo”[71] da noção e da natureza daquilo que denominamos trabalho.
Por outro lado, o conceito genérico ‘trabalho’ esconde muitas formas de atividades praticadas, como veremos mais adiante. O termo ‘trabalho’ serve como uma espécie de guarda-chuva que abriga todas as atividades humanas. Na sociedade do trabalho “todo ato humano é trabalho”[72]. É trabalho a atividade realizada pela mulher que cuida das crianças em casa; é trabalho aquilo que o operário faz na indústria; é trabalho a composição de uma música ou o ato de pintar um quadro; é trabalho o parto realizado pela grávida… A noção ‘trabalho’ tornou-se onipresente. O trabalho é como o ar que se respira. Tudo remete a ele e tudo dele depende.
Atacar o ‘trabalho’ ou dizer que estamos caminhando para o ‘fim do trabalho’, é um ato de vandalismo injustificado contra a sociedade do trabalho.
Várias perguntas nascem do que foi exposto: como o trabalho veio a ser o que é hoje? Se ele engloba todas as atividades humanas, como é possível defini-lo ou mesmo descrever sua especificidade? A saída para a crise do emprego é realmente alargar a noção de trabalho a tal ponto que todas as atividades devem ser remuneradas, como preferem alguns? Ou deve-se colocar limites a essa tentativa de mercantilização de todas as atividades e esferas humanas?
Dois são, portanto, os objetivos que iremos perseguir neste capítulo: num primeiro momento procuraremos definir o que é o emprego e quais são as suas implicações para a nossa sociedade; num segundo momento passaremos a definir o que entendemos por trabalho e acenar para as novas possibilidades que esta concepção de trabalho pode trazer para uma sociedade de multiatividades. Antes, porém, se faz necessário discorrer sobre como o trabalho chegou a ser o que é hoje e que fatores foram determinantes para que a nossa sociedade viesse a se compreender como uma sociedade assalariada. Dessa maneira queremos contribuir para um debate sobre a natureza e o lugar do trabalho na nossa sociedade e ao mesmo tempo perceber a força potencializadora que uma outra compreensão do trabalho pode assumir na construção de uma nova organização social.
Notas
[68] MÉDA, 1995, p. 26.
[69] Ibid., p. 8.
[70] MÉDA, 1995, p. 26.
[71] Na perspectiva aberta por Gorz, a rigor, não se pode falar em “redução” da noção de trabalho, pois a concepção moderna de trabalho é antes uma invenção sem precedentes na história da humanidade. Nesta linha de pensamento vai também Méda. Não se pode pensar que a economia teria operado uma redução em relação a um conceito ou uma realidade mais rica e mais ampla do trabalho, o que “seria cometer um contra-senso, pois esse famoso conceito ou esta famosa realidade não existia anteriormente, nem em si nem como representação”. MÉDA, op. cit., p. 68.
[72] Ibid., p. 101.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 2. O conceito de trabalho em André Gorz. Revista Vinculando, 2(2). https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/conceito_de_trabalho.html
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