Não basta distribuir eqüitativamente o trabalho entre todos. Na atual fase do capitalismo é preciso distribuir também entre todos as riquezas socialmente produzidas com cada vez menos trabalho[343].
Gorz torna-se partidário da renda básica na sua segunda fase, mais precisamente em 1983, com “Les chemins du paradis”. O seu pensamento sobre a renda básica sofre uma importante inflexão que não se pode ignorar. Num primeiro momento Gorz relaciona o direito à renda ao direito ao trabalho; na fase seguinte, ele admite e defende vigorosamente a alocação universal, incondicional e suficiente. Vejamos cada um desses momentos.
1. Vínculo entre direito à renda e direito ao trabalho.
No primeiro momento Gorz vincula o direito à renda ao direito ao trabalho[344]. Gorz raciocina em termos de direitos e deveres. Escreve ele:
Enquanto pertenço à sociedade, tenho o direito de pedir-lhe minha parte da riqueza socialmente produzida: enquanto pertenço à sociedade, esta tem o direito de pedir minha parte de trabalho social correspondente. É pelo dever que ela me faz que ela me reconhece como fazendo parte dela. Se ela não me pede nada, ela me rejeita. Direito ao trabalho, dever de trabalhar e direito de cidadania estão inextricavelmente vinculados.[345]
Gorz raciocina, na verdade, em termos da sociedade que está aí. Mesmo defendendo uma renda de cidadania, em termos de uma nova concepção de trabalho ele ainda não se distingue muito, neste aspecto, da concepção de renda básica que a direita tem e que ele critica. E isso porque a liberdade que a renda deveria garantir está para ele ainda estreitamente relacionada ao emprego. “A garantia de uma renda independente de um emprego só será portadora de liberdade se vier acompanhada do direito de cada um ao trabalho: ou seja, à produção de sociedade, à produção de riquezas socialmente desejáveis e à livre cooperação com os outros […]”[346].
Gorz traz para essa reflexão a análise das transformações ocorridas no capitalismo, especialmente a capacidade deste em produzir mais com menos trabalho. Gorz admite que “não é do trabalho em si, mas da duração do trabalho que a renda deve tornar-se independente”[347].
2. Defesa da renda de cidadania.
A partir de “Misères du présent. Richesse du possible”, escrito em 1997, Gorz dá uma guinada importante no seu pensamento relativo à concepção de renda cidadã que defendia até então. A nosso ver, muda a perspectiva da sua reflexão. Não raciocina mais em termos da sociedade capitalista centrada no emprego, mas articula a renda em vista da sociedade de multiatividades. “A segurança de renda é a condição primeira de uma sociedade de multiatividades”[348], afirma.
Ele próprio reconhece a inflexão no seu pensamento: “Durante muito tempo eu recusei a idéia de uma renda social que permite ‘viver sem trabalhar’”[349]. As razões dessa recusa estão relacionadas à sua idéia de que aos direitos correspondem deveres e de que o trabalho é importante para a socialização e para o reconhecimento social. Mas, à medida que diminui o peso da necessidade de todo o trabalho, de todas as pessoas, a justiça social exige que o trabalho diminua na vida de cada um e que seja eqüitativamente repartido entre todos[350]. Para ele, esse modo de raciocinar era coerente com alguns aspectos, mas incoerente com outro: “era coerente com a perspectiva da extinção do assalariamento e da ‘lei do valor’: a renda social garantida não era mais um salário. Ela era coerente com a apropriação e o controle do tempo. Mas ela não era coerente com as perspectivas e a mudanças introduzidas pelo pós-fordismo”[351]. Em seguida passa a descrever as quatro razões que o levaram a abandonar a posição anterior. Apresentamos, a seguir, ainda que sucintamente, essas razões.
1) A primeira razão diz respeito ao rompimento do vínculo entre tempo de trabalho e medida de trabalho. “Quando a inteligência e a imaginação (o general intellect) se tornam a principal força produtiva, o tempo de trabalho deixa de ser a medida do trabalho; mais, ele deixa de ser mensurável. O valor de uso produzido pode não ter nenhuma relação com o tempo consumido para a sua produção”[352]. Portanto, torna-se sempre mais difícil saber qual é o volume de trabalho com que cada indivíduo deve contribuir para o conjunto da sociedade num determinado período. Fica extremamente difícil medir a jornada de trabalho de certas categorias de trabalhadores, especialmente os que atuam no trabalho imaterial. Dessa maneira, se ressalta a importância da alocação universal e incondicional de uma renda capaz de estimular as atividades não remuneradas.
2) Gorz reconhece as objeções que se levantam contra uma tal proposta (renda universal e incondicional). No caso de a alocação de uma renda tiver que ser condicionada a uma contraprestação que a justifique, então, que ela seja um trabalho de interesse geral na esfera pública e que seja remunerada como fim, sem que isso altere o seu sentido. Mas, se este sentido não puder ser seguido e se a alocação servir para alavancar o desenvolvimento de uma ampla gama de atividades não remuneradas, então “é preciso que a alocação universal seja garantida incondicionalmente a todos. Porque, só sua incondicionalidade poderá preservar a incondicionalidade das atividades que só tem sentido se forem cumpridas por elas mesmas”[353].
3) A alocação universal é a que melhor se adapta à evolução do trabalho imaterial. Serve também para desvincular o direito à formação aos interesses das empresas. A alocação universal serve para “fazer do direito ao desenvolvimento das faculdades de cada um o direito incondicional a uma autonomia que transcende sua função produtiva […]”[354].
4) Mas é também a que corresponde melhor à economia para além da “lei do valor”. A presente evolução no campo da economia “torna caduca a ‘lei do valor’. Exige, de fato, outra economia, na qual os preços já não reflitam o custo do trabalho imediato, cada vez mais marginal, contido nos produtos e nos meios de trabalho, nem o sistema de preços, o valor de troca dos produtos”[355]. Num mundo em que fica cada vez mais difícil distinguir e avaliar a contribuição de cada um no processo de criação das riquezas, “a alocação universal de uma renda suficiente equivale a uma colocação em comum das riquezas socialmente produzidas”[356]. Cada vez mais o PIB é resultado não mais de contribuições individuais identificáveis, mas do conjunto da sociedade, portanto, uma obra coletiva, e da atual geração e das gerações passadas. O princípio do “a cada um segundo o seu trabalho”, caducou[357].
Pode-se dizer então que a alocação de uma renda universal e suficiente atende a um duplo objetivo: por um lado, contribui para a formulação de uma nova
equação de distribuição
das riquezas socialmente produzidas, e, por outro, aponta para uma sociedade diferente, onde a necessidade do trabalho se faz sentir de maneira diferente[358].
Gorz, desde o primeiro momento em que abordou a temática da renda básica, sempre acreditou não ser suficiente defender incondicionalmente todas as propostas de renda. Chama a atenção para o lugar de onde vêm e aponta para a necessidade de se verificar as reais intenções dessas propostas. Divide as propostas de renda básica em duas grandes correntes: os partidários da direita e os partidários da esquerda. A partir de 1997 passa a chamá-los de partidários da renda insuficiente e partidários da renda suficiente. O pano de fundo continua sendo o mesmo. Cada uma delas é cheia de conseqüências econômicas e sociais. Como já vimos a corrente da renda suficiente, dentro da qual Gorz se situa, vamos agora deter-nos um pouco na outra corrente.
De modo geral se pode dizer que os partidários da renda insuficiente compartilham da idéia de que os pobres são os responsáveis pela sua situação de desempregados, de pobreza, indigência e exclusão. Acreditam ser o desemprego voluntário. A saída seria liberalizar totalmente o mercado de trabalho a fim de que todas as pessoas em condições possam encontrar o seu emprego, não importando se mal pago ou não e quais as condições[359].
Por não perceberem as transformações estruturais ocorridas no capitalismo, sua política de renda insuficiente estigmatiza os mais pobres da sociedade, na medida em que força os desempregados a aceitarem empregos com salários rebaixados e mesmo aqueles que ninguém aceitaria em outra situação. Serve de argumento para “incitar” os desempregados a aceitarem qualquer tipo de trabalho. Ao mesmo tempo acaba sendo uma espécie de subvenção dada aos empregadores[360].
Os assistidos pela renda insuficiente, por outro lado, têm o sentimento de que fazem outros trabalharem no seu lugar. O Estado é visto sob a suspeita de estar fomentando o parasitismo e a preguiça, sem contar os controles humilhantes e vexatórios a que os assistidos são submetidos[361].
Por não reatar a solidariedade entre os incluídos e os excluídos, a renda insuficiente acaba por acelerar a desregulamentação, a precarização e a flexibilização do trabalho[362]. Termina por justificar e sacramentar econômica e socialmente a desigualdade social.
A instauração de uma renda de cidadania incondicional não pretende justificar, manter[363], ou mesmo aprofundar a brecha entre os dois grupos. Objetiva, pelo contrário, “reafirmar o pertencimento dos excluídos e dos ‘incluídos’ a um mundo comum”[364]. Ou, como afirma Deaglio, trata-se de retomar a antiga utopia de “‘fazer com que todos tenham o suficiente para comer’ e sair do problema cotidiano para uma digna perspectiva de vida, num projeto econômica e politicamente sustentável”[365].
Nas reflexões que realiza em “L’Immateriel” sobre as mudanças que o capitalismo opera, Gorz constata que a renda de existência, neste contexto, é vista como “necessária remuneração do tempo fora do trabalho cuja contribuição para a produtividade se torna decisiva”[366]. O capital forçou a situação a tal ponto que hoje a vida toda se torna produtiva como produção de capital fixo humano. Esta concepção de renda insuficiente legitima o domínio do capital sobre todas as dimensões e espaços da vida. “Se a renda de existência ‘remunera’ o trabalho invisível, esta remuneração autoriza a exigir que o trabalho invisível torne efetivamente o trabalho visível o mais produtivo possível”[367].
Pelo contrário, para Gorz, a renda de existência deve permitir não uma nova reapropriação por parte do capital, mas sua função consiste antes em restringir a esfera da criação de valor no sentido econômico, tornando possível a expansão de atividades que não criam nada que se possa comprar, vender, trocar por outra coisa, nada do que tenha um valor (no sentido econômico) – mas somente riquezas não monetárias que têm um valor intrínseco.[368]
O grande desafio que se apresenta à renda de cidadania universal e suficiente na era da economia informal é que ela proporcione o direito de acesso universal e ilimitado ao saber e à cultura e impeça o capital de se apropriar e instrumentalizar tanto um quanto a outra[369].
Na realidade, este desafio diz respeito à superação do domínio do econômico sobre o social, o político e o cultural. O grande trunfo de uma defesa de uma renda de cidadania repousa sobre um princípio antropológico e não econômico:
As pessoas têm direito ao mínimo vital porque existem e não para existirem. Sua instauração repousa sobre a seguinte idéia: a capacidade produtiva de uma sociedade é o resultado de todo o saber científico e técnico acumulado pelas gerações passadas. Assim, os frutos desse patrimônio devem servir ao conjunto das pessoas, sob a forma de uma renda de base, incondicional.[370]
E isso só é garantido na medida em que se desvincula a renda do trabalho. A justiça comutativa, própria da sociedade salarial e que fomentava a liberdade individual, deve ceder lugar à justiça distributiva[371], regida por outros critérios. Pois, segundo Leontieff, “quando a criação de riquezas não depende mais do trabalho dos homens, esses morrerão de fome à s portas do Paraíso a menos que se responda com uma nova política de renda à nova situação técnica”[372].
Constata-se que a vida das pessoas é entremeada com intermitências cada vez mais freqüentes e maiores entre emprego e desemprego. A alocação de uma renda suficiente e permanente permitiria à s pessoas poderem contar com um ingresso estável, ainda que o emprego não o seja. “A distribuição dos meios de pagamento deverá corresponder ao volume de riquezas socialmente produzidas e não ao volume de trabalho fornecido”[373].
As reflexões feitas acima nos levam a renda de cidadania como um ingresso pago em moeda pelo Estado a cada membro da sociedade, do nascimento à morte, independente da sua condição social e do fato de estar trabalhando, ter trabalhado ou ainda vir a trabalhar. Não exige, portanto, nenhuma contrapartida. Seu montante é calculado em função dos recursos de cada país[374].
A renda de cidadania aparece assim como a condição indispensável para o desenvolvimento da autonomia existencial.
Notas
[343] Cf. SANSON, César; LANGER, André: CORBELLINI, Dárnis. Brasil: pensar o trabalho na perspectiva do bem comum e da solidariedade. In: NEUTZLING, Inácio (Org.). Bem comum e solidariedade: por uma ética na economia e na política do Brasil. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2003, p. 127.
[344] Cf. GORZ, 1988, p. 253.
[345] Ibid., p. 256. Alain Caillé, por exemplo, critica a visão contratualista da sociedade capitalista sobre a qual repousa esta percepção de sociedade. “A idéia segundo a qual ‘não se tem nada sem nada’ faz parte das crenças largamente partilhadas pela vida social. Não se pode receber nada sem fornecer uma contrapartida igual ou proporcionalmente à que se forneceu, acredita-se. Não há direito(s) sem dever(es), e não há renda sem trabalho. Parece que as relações entre sujeitos devem obedecer à regra do ‘troca-troca’. E, portanto, que os mais pobres devem ‘merecer’ as prestações sociais que lhe são concedidas”. CAILLÉ, Alain. In: AZNAR, 1997, p. 91.
[346] GORZ, 1983, p. 88. Os grifos são do autor.
[347] Id., 1988, p. 256.
[348] Id., 1997, p. 134.
[349] GORZ, 1997, p. 139.
[350] Cf. Ibid.
[351] Ibid., p. 140.
[352] GORZ, loc. cit.
[353] GORZ, 1997, p. 143-4. Os grifos são do autor.
[354] Ibid., p. 144-5.
[355] Ibid., p. 148.
[356] GORZ, 1997, p. 148.
[357] GORZ, loc. cit.
[358] Cf. Ibid., p. 149.
[359] Cf. LAVILLE, Jean-Louis. In: AZNAR, 1997, p. 79.
[360] Cf. GORZ, 1997, p. 135-6. Cf. também _____. Direito ao trabalho versus renda mínima. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 52, dez. 1996, p. 76-80.
[361] Cf. Id., 1988, p. 257.
[362] Cf. Id., 1997, p. 137.
[363] Cf. SUE, 1997, p. 70-73.
[364] CAILLÉ, Alain. In: AZNAR, 1997, p. 92.
[365] DEAGLIO, Mario. Distribuição da renda. Uma utopia? CEPAT Informa, Curitiba, n. 84, maio 2002, p. 57.
[366]GORZ, André. L’Immateriel: connaissence, valeur et capital. Paris: Galilée, 2003c, p. 30.
[367] GORZ, loc. cit. O grifo é do autor.
[368] Ibid., p. 31.
[369] GORZ, 2003c, p. 31.
[370] RAMONET, Ignacio. A aurora. CEPAT Informa, Curitiba, n. 58, fev. 2000, p. 03.
[371] Cf. ROBIN. Jacques. In: AZNAR, 1997, p. 74.
[372] LEONTIEFF, Wassily. La distribution du travail et du revenu. Pour la Science, 61, avril 1982 apud GORZ, 1997, p. 146-147.
[373] GORZ, 1997, p. 147.
[374] Cf. PAÃELLA, Daniel Raventós. La renta básica: lo que es y lo que no es. El País, Madrid, 12 jun. 2001; BRESSON, Yoland. Le revenue d´existence. In: AZNAR, 1997, p. 72-73; SUE, 1997, p. 69-70.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 3.3 Mínimo vital universal e suficiente. Revista Vinculando, 2(2). https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/minimo_vital_universal.html
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