Evidentemente que com tudo o que vimos até aqui, o que está em jogo não são aspectos meramente pontuais que podem ser desencaixados e reencaixados sem que afetem o conjunto da sociedade. Somos da tese de que a mudança da sociedade passa pela mudança do lugar que o trabalho ocupa na vida das pessoas e da sociedade. Ambos, trabalho e sociedade, estão interconectados e não há como mudar um (o trabalho) sem que com isso se acabe afetando a outra (a sociedade).
Tampouco as transformações que devem ser processadas no âmbito do trabalho são mudanças de cunho técnico. São eminentemente políticas. Uma nova concepção de trabalho e a instauração das propostas acima estudadas requerem vontade política e mudança cultural.
Gorz está convencido de que uma esquerda ousada ou o socialismo do futuro passará pelo reconhecimento da inversão polanyiana, ou seja, pela convicção de que a racionalidade econômica, e dentro dela a racionalidade financeira, deve novamente ser subordinada a fins e valores societais[375]. Em nível de mundo está em crise a política representativa fortemente identificada com os interesses do grande capital. O descrédito da política vem em boa parte da subserviência dos governantes aos interesses do mercado. As políticas neoliberais não resolveram os problemas das desigualdades sociais. O seu fracasso afetou visivelmente os governos coniventes com tais políticas, na medida em que significaram também dar as costas para os anseios das populações. Gorz insiste na participação de toda a sociedade no debate das grandes questões que lhe dizem respeito. Trata-se no fundo de retomar formas mais ricas, inovadoras, descentralizadas, participativas do agir político. As soluções podem ser tecnicamente perfeitas, mas muitas vezes são politicamente desconectadas e excludentes. Neste contexto, é preciso que todos os segmentos da sociedade sejam chamados para uma real e efetiva participação[376].
Uma retomada do político deve-se dar em conjunto com o reconhecimento de uma inversão de valores que começa a se mostrar dentro das sociedades. Gorz não se cansa de chamar a atenção para o fato de que a ética do trabalho, o valor-trabalho, está em crise. Já são muito poucos os que “morrem” pelo seu trabalho: “O trabalho, para quase 80% das pessoas interrogadas, não é mais um valor ou uma fonte de valores e de sentido, mas apenas ‘um meio de ganhar a vida’, ou seja, ‘uma necessidade subordinada’”[377].
Precisamos nos render à s evidências de que estamos entrando numa nova era em que o valor-trabalho foi deslocado. Já não figura mais, ao menos para a grande maioria, no topo das coisas mais importantes da vida. Suportam o trabalho em vista daquilo que ele pode proporcionar como mais agradável, realizador e cheio de sentido fora dele.
O tripé deverá ser completado com uma “revolução nas prioridades”[378] que determinada sociedade irá adotar. As propostas acima indicadas se justificam nesta perspectiva. Elas querem contribuir para que a sociedade brasileira comece por realizar um amplo e profundo debate em torno de novas prioridades, calcadas não mais sobre a racionalidade econômica, mas sobre valores sociais. Que ajudem a pensar uma nova sociedade e, dentro dela, uma nova organização social do trabalho.
Notas
[375] Cf. GORZ, 1988, p. 226.
[376] Cf. Id., 1995, p. 140, col. 1.
[377] GORZ, 1995, p. 139, col. 1. Os grifos são do autor.
[378] Conceito tomado de BUARQUE, Cristovam. A revolução nas prioridades. 2. ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1993. Neste livro o autor, ao analisar o tipo de modernização seguido pelo Brasil, propõe a urgência de passar da modernidade técnica, marca da modernidade brasileira, Ã modernidade ética. É certamente a melhor radiografia do fracasso do tipo de desenvolvimento que se pautou rigorosamente por uma racionalidade instrumental.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 3.4 Mudança política e cultural. Revista Vinculando, 2(2). https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/mudanca_politica_cultural.html
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