Para Gorz a idéia moderna de trabalho é contemporânea do capitalismo industrial. A indústria, como modo de produção, ganha relevo apenas no século XVIII. Até aí a “produção material” não estava, em seu conjunto, regida pela racionalidade econômica[99]. Mas, vários fatores foram decisivos para que a economia e, particularmente, o trabalho, fossem submetidos à lógica da racionalidade econômica. Vejamos, a seguir, três desses fatores que contribuíram para evidenciar uma mudança de paradigma.
a) O trabalho como medida. Para Dominique Méda, a “Riqueza das Nações”, de Adam Smith, marca uma ruptura em relação ao contexto intelectual da época e constitui uma inversão na ordem dos valores. Até começos do século XVIII havia uma forte condenação da vontade de enriquecimento, e o trabalho, uma ausência completa nas obras dos intelectuais. Mas, tudo isso muda e muda rapidamente. As experiências e pesquisas que têm por objetivo aumentar a busca das riquezas são francamente incentivadas e o trabalho passa a ser um tema importante na economia política. O trabalho torna-se o meio por excelência para aumentar a riqueza[100].
O trabalho aparece a Smith como tendo dois aspectos: primeiro, o trabalho do indivíduo aparece como uma dispensa física, que tem por corolário o esforço, a fadiga e a pena e que admite por tradução concreta uma transformação material do objeto; segundo, o trabalho é descrito como uma substância homogênea idêntica em todos os tempos e lugares e infinitamente divisível em quantums (em “átomos”)[101]. E assim está dado um dos elementos constitutivos do trabalho entendido como emprego. O tempo de trabalho é elevado a critério para medir e comparar quantidades diferentes de trabalho. “O trabalho é divisível em quantidades idênticas e é possível decompor todo o trabalho complexo em múltiplas quantidades de trabalho simples, mas também de combinar o mais inteligentemente possível essas diferentes quantidades em muitas operações”[102].
b) O trabalho como riqueza. O trabalho não é visto só como critério de medida, mas progressivamente e principalmente como criador de riquezas, isto é, como fator de produção. Várias reduções, no entanto, são necessárias para se chegar a isso. Uma primeira diz respeito à redução do trabalho ao trabalho produtivo, excluindo todas as atividades que mais tarde passariam a ser chamadas de “serviços”. Produtivo é só aquele trabalho que produz valor. Mas, e o que é riqueza? Portanto, uma segunda redução é necessária. Malthus conceberá uma visão de riqueza extremamente redutora. Para ele a riqueza deve ser passível de ser medida, calculada. E uma concepção demasiado ampla não prestará para isso, portanto, não será prática. A riqueza deverá ser limitada aos objetos materiais:
Chamo riqueza os objetos materiais necessários, agradáveis ou úteis ao homem, e que são voluntariamente apropriados pelos indivíduos ou nações à s necessidades que eles experimentam. A definição deste modo limitada contém quase todos os objetos que nós temos ordinariamente em vista ao falar da riqueza. […] Um país será rico ou pobre, segundo a abundância ou a raridade dos objetos materiais dos quais é dotado, relativamente à vastidão de seu território.[103]
Essa escolha é extremamente importante para se compreender a economia na sociedade capitalista, bem como a crise em que a nossa sociedade está mergulhada por conta da revolução informacional[104]. Ao mesmo tempo ela é importante pelas conseqüências que tem para a definição do trabalho. Pois, a concepção redutora de riqueza entranha uma concepção redutora de trabalho. “Trabalho significa, de agora em diante, trabalho produtivo, isto é, o trabalho exercido sobre os objetos materiais e intercambiáveis, a partir dos quais o valor acrescentado é sempre visível e mensurável”[105].
O “estrago” está feito. Mais do que uma invenção da modernidade, o trabalho assim compreendido é, na verdade, uma invenção dos economistas. Compreende-se como trabalho “toda atividade capaz de acrescentar valor a um objeto material”[106].
c) O trabalho como mercadoria. No contexto dos valores emergentes da principiante sociedade industrial, o trabalho constituiu o símbolo da autonomia individual. Esta idéia está fortemente presente em Locke, que havia fundado o direito à propriedade precisamente no exercício de suas faculdades por parte de cada indivíduo e não mais sobre uma ordem natural. “Cada um tem um direito particular sobre sua própria pessoa, sobre a qual nenhuma outra pessoa pode ter nenhuma pretensão. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, podemos dizer, são seu próprio bem”[107]. Ou seja, o direito à propriedade está agora estreitamente relacionado ao trabalho e este fundado sobre a emergência do indivíduo.
O trabalho em sociedade permite aos indivíduos negociar seus talentos, viver com sua força de trabalho. Mas o trabalho em si torna-se objeto de troca. O mercado passa a receber outra mercadoria que não os simples produtos feitos ao menos por uma parcela dos homens: o trabalho[108]. Ele pode ser vendido e comprado no mercado como outra mercadoria qualquer.
Para que seja uma mercadoria, no entanto, o trabalho necessita de dois outros ingredientes: primeiro, que ele possa ter um preço, isto é, de que seja uma atividade passível de ser comprada e vendida; segundo, a possibilidade de que uma parte da atividade humana possa ser separada de seu sujeito. Agora, portanto, o trabalho é conhecido como uma “quantidade de esforço físico mensurável que se inscreve duradouramente sobre um objeto material e desde logo suscetível de aumentar o seu valor e que sua ‘mercantilização’ é possível”[109].
Na perspectiva dos teóricos do século XVIII o trabalho está estreitamente relacionado à liberdade do indivíduo. O trabalho é sinônimo e fator de liberdade. A autonomia por excelência brota do trabalho. Por outro lado, inventa-se um conceito de trabalho imediatamente material, quantificável e mercantil. Que revolução!
E por se tratar de uma “revolução” no sentido pleno da palavra, convém que se veja com mais atenção o que realmente está em jogo, pois isso é de extrema importância para o que segue e mesmo para fundamentar a distinção que Gorz faz entre emprego e trabalho e entre atividades mercantis e atividades não mercantis[110].
“Para se consolidar, a economia de mercado – sistema no qual a mercadoria é a forma dominante de mediação das trocas – precisa também de um mercado para a ‘mercadoria’ força de trabalho”[111]. O trabalho torna-se mercadoria na medida em que ele pode ser vendido e comprado por um determinado preço no mercado de trabalho. Mas, o que são mercados e mercadorias? Para Polanyi, mercadorias são “objetos produzidos para a venda no mercado; por outro lado, os mercados são definidos empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores”[112].
Qual é a condi
ção para que se institua u
m “mercado” para a “mercadoria” trabalho? Segundo Offe, “esta solução requer a existência de mão-de-obra assalariada ‘livre’, isto é, de transformação da força de trabalho em mercadoria (‘trabalho assalariado’), assim como de sua libertação dos vínculos normativos […]”[113]. Offe avança na reflexão adiantando que “um mercado de trabalho livre existe quando e somente quando os trabalhadores (seguindo a conhecida frase de Marx) são livres no duplo sentido, ou seja, ‘como pessoas livres, podem dispor de sua força de trabalho como mercadoria própria’ e ‘são desprovidos de tudo o mais necessário à realização de sua força de trabalho”[114], isto é, são livres de propriedade. Há um consenso em torno do fato de que a institucionalização de um mercado de trabalho é característica central do capitalismo.
Polanyi adverte, no entanto, que o trabalho, a terra e o dinheiro, os três elementos fundamentais da indústria no capitalismo “obviamente não são mercadorias”[115]. E isso porque nenhum deles é produzido para a venda, fato pelo qual são mercadorias fictícias[116]. Contudo, como Polanyi é forçado a reconhecer, “a ficção da mercadoria oferece um princípio de organização vital em relação à sociedade como um todo […]”[117].
A partir da distinção entre mercadoria genuína e mercadoria fictícia, feita por Polanyi, é possível, então, destrinchar as razões pelas quais o trabalho – assim como o dinheiro e a terra – não é uma mercadoria genuína[118].
Primeira razão: a força de trabalho difere das mercadorias genuínas pelo fato de não ser criada com o objetivo de ser vendida no mercado. Com base em Polanyi, Offe diz o seguinte: “A decisão de produzir a mercadoria fictícia trabalho não é tomada pelas empresas orientadas para o mercado, mas pelas famílias e outros agentes de socialização cujas motivações são amplamente distintas da negociabilidade”[119].
Segunda razão: a força de trabalho difere das mercadorias convencionais por sua variabilidade e flexibilidade. “O que o agenciador de mão-de-obra compra no mercado de trabalho não é ‘trabalho’, mas força de trabalho”[120].
Terceira razão: a “mercadoria” força de trabalho não é claramente separável de seu proprietário.
Todo comprador da força de trabalho deve contar com a ‘participação’ do trabalhador, pois, por um lado, o comprador não pode controlar exclusivamente a mercadoria adquirida e, por outro, a utilização da força de trabalho está inevitavelmente ligada à cooperação de seus proprietários. O trabalhador precisa também querer trabalhar.[121]
Resumidamente, podemos dizer que “a história da formação do mercado de trabalho, da instituição do trabalho assalariado como meio de inserção social, é a própria história da transformação da força de trabalho em mercadoria, ou seja, de sua ‘mercadorização’”[122].
Notas
[99] GORZ, 1988, p. 28-29.
[100] Cf. MÉDA, 1995, p. 60-62.
[101] Cf. ibid., p. 62.
[102] MÉDA, 1995, p. 63-64.
[103] MALTHUS, Th. Principes d’économie politique considérés sous le rapport de leur application pratique. Paris: Calmann-Lévi, 1969, p. 14, apud MÉDA, 1995, p. 67.
[104] Há um amplo debate sobre a insuficiência da noção de riqueza e a necessidade de voltar a ampliá-la. O próprio Gorz entra neste debate. Ver especialmente GORZ, André. L’Immateriel: connaissence, valeur et capital. Paris: Galilée, 2003c; MÉDA. Qu’est-ce que la richesse? Paris: Champs, 1999; Revue du Mauss, Paris, n. 21, premier semestre 2003.
[105] MÉDA, 1995, p. 68.
[106] MÉDA, loc. cit.
[107] LOCKE, J. De la propriété des choses. In: _____. Traité du gouvernement civil. Paris: GF-Flammarion, 1992 apud MÉDA, 1995, p. 69.
[108] MÉDA, 1995, p. 70.
[109] Ibid., p. 71.
[110] Cf. GORZ, 1988, p. 173-211.
[111] SILVA, Josué Pereira da. Cidadania e/ou trabalho: o dilema da questão social neste final de século. Idéias, Campinas, v. 5, n. 2-v. 6, n. 1, 1998-1999, p. 131.
[112] POLANYI, 2000, p. 93.
[113] OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. 2. ed., 1. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 71.
[114] Ibid., p. 71.
[115] POLANYI, op. cit., p. 94.
[116] POLANYI, loc. cit.
[117] POLANYI, 2000, p. 94.
[118] Para o que segue cf. OFFE, 1995, p. 76-78.
[119] Ibid., p. 76.
[120] Ibid., p. 77.
[121] OFFE, 1995, p. 78.
[122] SILVA, 1998, p. 133.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 2.2 A emergência da racionalidade econômica. Revista Vinculando. https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/racionalidade_economica.html
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