A cidade é resultado de uma disputa
1. A cidade é construída pelos homens. Mas os homens que a constróem têm interesses e valores diferentes: a cidade que conhecemos hoje é resultado de uma disputa entre os que tratam a cidade como fonte de lucro (os capitalistas) e os que tratam a cidade como espaço de vida (os moradores).
2. Nesta disputa, como os interesses dominantes são os dos grupos econômicos dominantes – que conseguem, geralmente, eleger autoridades e representantes que vão defender seus interesses (do presidente ao prefeito, passando pelo governador) -, as cidades são, primeiramente, montadas e organizadas para servir ao capital (à s grandes empresas, ao grande comércio, aos bancos, à indústria automobilística, à s grandes imobiliárias). E o que vai ocorrer é que os recursos públicos (os impostos pagos por toda a população) vão ser usados prioritariamente a serviço de interesses particulares, de um pequeno grupo, de uma elite, e não de toda a população.
3. Para os donos do capital, a cidade é fonte de lucro: ela é encarada e tratada como meio de produzir e acumular, como fonte de negócio para construtoras e empreiteiras: a construção de ruas, avenidas e viadutos – a cidade a serviço do carro e do asfalto, do cimento e do concreto (a construção de imóveis em áreas de proteção ao meio ambiente, com altura acima do gabarito permitido, a não construção de praças em favor de obras imobiliárias); a valorização do solo urbano (a especulação imobiliária; os loteamentos clandestinos – onde quem sofre as consequências das irregularidades é quem foi enganado, não o loteador).
Um exemplo de especulação imobiliária bastante comum é o praticado por grandes proprietários de terrenos na periferia. Para valorizar o solo eles deixam uma grande extensão vazia ("terreno baldio") e loteiam um terreno mais distante; quando as pessoas começam a morar neste terreno mais distante, um mínimo de infra-estrutura começa a surgir com o tempo (transporte, iluminação, água, etc.); isto automaticamente valoriza o terreno baldio que fica no caminho e o proprietário pode, então, vendê-lo em condições extremamente favoráveis. Já a população trabalhadora que foi morar no terreno adiante sofre as dificuldades do trajeto maior para o trabalho. Tal prática só pode ser feita com a conivência das autoridades.
O ponto de vista do lucro contamina todos os elementos que compõem a cidade:
A moradia – é o imóvel, a ser vendido ou alugado;
A rua – é a oportunidade de a empreiteira ser contratada para asfaltar ou refazer;
A praça – é o lugar para um futuro edifício ou uma futura obra;
O solo urbano – é o terreno que pode ser cada vez mais valorizado, e fonte de lucros sempre maiores;
A prefeitura – é onde as empreiteiras conseguem o maior número de obras, a preços em geral superfaturados, através de licitação viciada.
Para os moradores: cidade como espaço de vida
4. Mas, para o morador, a cidade é para viver, não para dar lucro: é um espaço de vida – de moradia, de trabalho, de transporte, de escola para os filhos, de convivência, de lazer (a praça, o bar, o campo de futebol).
Os movimentos populares
5. E é por isso que, depois de muito tempo vendo o seu lugar de viver abandonado pelas autoridades, os moradores saíram de sua passividade, se mobilizaram e começaram a lutar por seus direitos, pelo direito a uma rua asfaltada, a iluminação elétrica, a um transporte decente, a água canalizada, a esgoto canalizado, ao recolhimento do lixo e assim por diante.
6. Por que esta explosão urbana?
* O regime autoritário havia organizado uma política urbana a serviço dos grandes grupos imobiliários e da construção civil, o que provocou uma forte especulação imobiliária;
* Uma política agrária que expulsava o homem da terra, privilegiando grandes propriedades, modernização agrícola e pecuária para exportação, o que provocou um forte aumento do êxodo rural (a população urbana era de 45% em 1960 e chegou a 75% em 1991, apenas 30 anos depois): o campo foi esvaziado e as cidades incharam;
* Forte repressão sobre as organizações populares nos primeiros anos da década de 70 (1969-1973: período Médici).
7. Devido a estas políticas, o atendimento à s necessidades de consumo coletivo (infra-estrutura urbana) das camadas populares e dos bairros periféricos tornou-se secundário. Os setores populares sofriam a carência destes serviços mas não podiam se manifestar. Com a distensão de Geisel, a insatisfação pôde se expressar.
8. Os movimentos populares urbanos lutam para se reapropriar da cidade. De meados dos anos 70 em diante, o Brasil viu surgir inúmeros movimentos de luta por todos os serviços urbanos que faziam falta nos bairros populares. Formaram-se associações de moradores e federações de associações, que pressionaram as autoridades e, em muitos casos, conseguiram obter suas reivindicações, ao menos em parte. As prefeituras que, antes, nem se preocupavam em dar explicações à população, tiveram de prestar cada vez mais atenção à s reivindicações populares. Só no município do Rio de Janeiro, entre 1946 e 1963 – dezessete anos – haviam sido criadas 124 associações de moradores – uma média de 7 por ano; pois bem, em apenas dois anos, entre 1979 e 1981, foram criadas 166 novas associações de moradores – uma média de 83 por ano, dez vezes mais.
9. Mesmo nos lugares onde os movimentos populares não obtiveram vitórias a nível do poder executivo, houve avanços no processo de democratização e também na melhoria dos serviços à população. Numa pesquisa feita junto a 50 municípios do Estado do Rio de Janeiro, verificou-se que houve melhoria nos serviços públicos: em primeiro lugar, por causa das pressões populares e, em segundo lugar, pela introdução de novos organismos ou novas instâncias de controle do serviço público (Ribeiro e Santos Júnior, 1993). Um dos frutos da Constituição de 1988 foi a possibilidade de se constituírem Conselhos Municipais (da Saúde, da Educação, da Criança e do Adolescente, etc.) compostos por representantes da sociedade civil. Tais conselhos têm poder para controlar o que o governo municipal está realizando no seu setor específico. Em vários lugares, estes conselhos têm sido instrumentos importantes de interferência da sociedade civil junto aos governos.
10. O movimento de associações em defesa dos interesses dos moradores não começou nos anos 70: data de muito antes. Mas a grande maioria delas funcionava dentro do esquema clientelista: vinculada a algum partido ou candidato, solicitando favores em troca de votos. Este esquema tinha deturpado, por exemplo, as SABs (Sociedades de Amigos do Bairro) – criadas no período municipal de Jânio Quadros – enquanto representantes dos moradores. Foi o movimento das comunidades de base nos anos 70 que provocou uma mudança fundamental neste processo associativo. Surgidas durante o período mais repressivo da ditadura militar, as CEBs, embora fossem comunidades religiosas, começaram a promover a mobilização de seu bairro para reivindicar melhores condições urbanas (transporte, asfalto, creche, etc.). E, na sua perspectiva, tais reivindicações não eram favores, mas direitos – direitos que eram obrigação das autoridades municipais e dos representantes políticos. Os moradores, organizados pelas CEBs, passaram a exigir e não mais pedir. Onde não havia associações, as comunidades funcionaram como tal. Onde havia, elas entraram nas mesmas e as mudaram por dentro. A relação com o poder político, com os candidatos, mudou.
11. As CEBs tinham (têm) o hábito de utilizar procedimentos democráticos em sua atividade cotidiana: decisões coletivas, tomadas por maioria, longas discussões para se chegar a um consenso, etc. E tinham uma preocupação especial com a autonomia da base (os movimentos de base da Igreja católica durante muito tempo foram criticados, inclusive, como “basistas”). A contribuição das CEBs para os movimentos populares foram em duas direções, sobretudo: de um modo geral, elas puseram em ação nestes movimentos práticas democráticas, insistindo na participação nas informações, nas reuniões e assembléias, na tomada de decisões, nas ações coletivas. E influíram no sentido da participação democrática e da busca de autonomia dos movimentos e organizações populares. Autonomia com relação ao Estado, aos políticos, aos líderes populistas, aos partidos políticos, aos agentes externos (intelectuais ou estudantes) que agem junto aos grupos populares.
12. As comunidades de base contribuíram, portanto, para o processo de democratização da vida política brasileira. De duas maneiras, principalmente: opondo-se ao elitismo, ao autoritarismo e ao clientelismo característicos da cultura política brasileira; e atuando pela participação das classes populares no processo de tomada de decisões políticas[1]. Singer, por exemplo, lembra que o movimento de associações de moradores em São Paulo se transformou profundamente a partir da ação das Cebs, porque os membros das Cebs tinham uma concepção clara de seus direitos: eles não admitiam "relações de clientelismo" (voto em troca de favor) entre os moradores e os políticos ou o prefeito, porque consideravam que suas reivindicações eram um direito e que as autoridades públicas tinham a obrigação de atendê-las (Singer, 1980: 92). Pode-se dizer que a ação das Cebs em seu conjunto foi um dos fatores para o desenvolvimento, em certos setores populares, de uma consciência que vê a atividade política como um serviço ao público, que exige "ética na política".
13. Papel fundamental, no caso de São Paulo, teve o Movimento do Custo de Vida como impulsionador da mobilização urbana na cidade. O MCV foi o primeiro grande movimento social depois do AI-5. A partir dos clubes de mães organizados nos bairros, iniciou-se uma tomada de consciência do alto custo de vida para as classes populares e da necessidade de uma reação coletiva a esta situação. A pesquisa sobre as despesas familiares feitas pelos próprios membros dos clubes de mães
foi o estopim do movimento. Daí para a frente promoveram-se reuniões cada vez mais amplas, reunindo os bairros mais carentes. Em 1976, a assembléia chegou a congregar 4 mil pessoas. Em plena ditadura, era um número significativo. Daí passou-se à coleta de assinaturas – pelo congelamento dos preços e aumento dos salários -, em campanhas sucessivas, que chegaram a 1 milhão e 250 mil assianturas.
14. Esta mobilização, que começou em 1973 e chegou ao auge em 1978, foi o ponto de partida ou o mecanismo propulsor de várias outras mobilizações urbanas – a luta dos loteamentos clandestinos, a luta por creches, por saúde, etc. Em todas estas lutas, o papel das comunidades de base, alimentando as lutas, fornecendo quadros, se manteve muito importante. Isto confirma uma reflexão dos estudiosos dos movimentos sociais: quanto menos organizada uma dada população, mais difícil de mobilizar; quanto mais organizada (em qualquer tipo de associação: esportiva, religiosa, de lazer, etc.), mais condições existem para a mobilização. O hábito associativo oferece elementos positivos para uma ação coletiva. Evidentemente, se essa associação promove o debate sobre o interesse coletivo, se incentiva a participação, a possibilidade de ação aumenta.
15. A vinculação entre as lutas urbanas e a luta pela democratização do país. Os movimentos urbanos dos anos 70 e 80 foram também parte do amplo movimento pela redemocratização do país. As classes populares haviam sido alijadas da atenção pública, tanto os trabalhadores – vítimas do arrocho salarial que sustentou o “milagre econômico” – quanto seus bairros – vítimas do desinteresse governamental. Os movimentos urbanos contribuíram para derrubar um regime que, estruturalmente, não poderia levar em conta as demandas populares. Eles foram obrigando os governos a se voltarem para as massas, para as reivindicações populares, para as condições de vida urbanas, foram obrigando os governos (municipais, estaduais, federal) a atenderem a suas exigências, ao menos parcialmente. Com a população organizada em associações, movimentos, federações, a ditadura não tinha condições de se manter. Neste particular, há muita semelhança entre o processo vivido no Brasil neste período e os anos 70 na Espanha – transição da ditadura para a democracia (embora a ditadura de Franco fosse muito mais enraizada que a nossa e embora o povo espanhol tivesse um passado de lutas significativo). É notório lá – pela descrição que faz Castells – que as associações de moradores e as federações municipais de associações se envolveram não apenas em movimentos reivindicatórios de bens coletivos (canalização de água, esgoto, iluminação, transporte, áreas de lazer, etc.) como também procuraram resgatar suas raízes culturais – abafadas pela ditadura – e buscaram intervir no poder local, transformando-o em um poder a seu serviço.
16. A partir desta experiência, Castells elabora uma tipologia dos movimentos de protesto urbano de nosso tempo. Eles parecem se desenvolver em torno de três temas principais:
1. Reivindicações enfocadas no consumo coletivo, isto é, bens e serviços direta ou indiretamente providos pelo Estado – ele chama estes movimentos reivindicatórios de "sindicalismo de consumo coletivo";
2. A defesa da identidade cultural associada com e organizada em torno de um território específico – movimentos em torno da comunidade, buscando revalorizar os laços sociais entre os moradores;
3. A mobilização política em relação com o Estado, enfatizando particularmente o papel do governo local – movimentos em busca da auto-gestão urbana.
17. Este último aspecto é plenamente confirmado no caso brasileiro: um resultado importante destes movimentos foi a conquista, em algumas cidades, de prefeituras comprometidas em fazer do governo municipal um serviço de toda a população – um serviço efetivamente público: prefeituras com participação democrática e priorizando a maioria pobre da população da cidade. A chegada ao poder de governos comprometidos com a democratização do poder público ocorreu fundamentalmente em municipalidades onde se deram lutas urbanas, onde se desenvolveram anteriormente movimentos reivindicatórios: isto vale tanto para São Paulo, Porto Alegre, como para Santos, Angra dos Reis, Barra Mansa (Estado do Rio), Belém, Betim (em Minas Gerais) e muitas outras cidades. Em São Paulo, o MCV, a luta dos loteamentos clandestinos. a luta por creches, a luta por um melhor serviço de saúde e pelo controle popular da saúde, a luta pelos conselhos muncipais, tudo isso levou a conquistar a prefeitura em 1988. Do mesmo modo, foi a ampla luta dos bairros populares em Porto Alegre que fêz crescer a participação popular e levou à vitória de uma proposta de governo identificada com seus interesses. O mesmo pode ser dito do forte movimento de bairros de Belém. Idem, em Angra dos Reis: o primeiro prefeito eleito pelo PT em Angra (1988) era um líder, militante de movimentos populares.
18. O que isto revela? Que, embora seja um processo lento, cujos resultados demoram a aparecer, os movimentos sociais acabam produzindo efeitos na cena pública, na sociedade. O que os movimentos reivindicam? que os direitos dos setores populares sejam também atendidos, que os serviços urbanos também sejam oferecidos a eles, que os recursos públicos sejam aplicados onde o público precisa, que os setores populares tenham participação nas decisões políticas. São estas mobilizações que acabam conduzindo à vitória, mais cedo ou mais tarde, de governos comprometidos com a causa pública, sensibilizados pela dívida social com a maioria mal-atendida.
[1]. A este respeito, ver: Singer, 1980; Wanderley, 1981; Jacobi, 1983; Evers, 1984; Mainwaring e Viola, 1984; Ireland, 1986; Krischke, 1986; Mainwaring, 1986.
Datos para citar este artículo:
Ivo Lesbaupin. (2005). Movimentos populares e a conquista do espaço urbano (1). Revista Vinculando. https://vinculando.org/brasil/movimentos_populares.html
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