19. Esta é, aliás, a primeira dificuldade enfrentada por este tipo de governo: a ânsia popular por ver finalmente atendidos suas exigências seculares. E que governo municipal nenhum tem condições de atender imediatamente. Mas pode atender a médio prazo, pode atender, no prazo de um mandato apenas, a algumas reivindicações populares.
Aqui, neste particular, é impressionante o que é possível se fazer, quando há vontade política, num município – seja ele grande, médio ou pequeno, tenha ele muitos ou poucos recursos. Um município como Janduís, no Rio Grande do Norte, conseguiu, numa gestão apenas, oferecer o único serviço psiquiátrico gratuito de todo o interior. Um outro município pequeno do litoral cearense, Icapuí, conseguiu colocar todas as crianças na escola, antes mesmo de haver escolas suficientes para todos: salas de aula foram improvisadas em salões paroquiais, em igrejas, sob as árvores. São Paulo conseguiu, numa única gestão, melhorar enormemente a qualidade do ensino nas escolas municipais, além de oferecer uma merenda escolar de alto teor nutritivo.
Porto Alegre conseguiu começar o orçamento participativo – símbolo nacional da democracia participativa, experiência que, hoje, tem sido estudada em vários lugares do mundo (recentemente, num Congresso sobre Municípios, em Paris) e que algumas prefeituras na Europa pretendem colocar em prática proximamente. Em todos estes lugares, a taxa de mortalidade infantil caiu significativamente em função das políticas sociais implementadas: atenção pré-natal, reforço nutricional para gestantes, saneamento básico, política municipal de saúde.
20. Eu gostaria de chamar a atenção para o fato de que estes governos têm conseguido ser bem sucedidos mesmo neste período de hegemonia neoliberal, mesmo com as dificuldades criadas pelo governo federal e por muitos governos estaduais, mesmo contra a mídia local. Isto mostra que é possível, como afirmava há muitas décadas Gramsci, construir uma contra-hegemonia, uma alternativa de poder e de pensamento e de cultura política no meio de uma situação altamente desfavorável.
21. Isto nos leva ao tema da atual situação desfavorável. Depois de uma fase de forte ascenso dos movimentos populares (meados dos anos 70 até o fim dos 80), os movimentos sociais vêm sofrendo um sério refluxo. As políticas econômicas implementadas primeiro pelo governo Collor e, em seguida, radicalizadas pelo governo FHC, promoveram uma forte redução da atividade econômica no país. A abertura comercial e financeira desenfreada, as altas taxas de juros conseguiram a proeza de quebrar inúmeras empresas, desnacionalizar outras e provocar um aumento do desemprego a um grau antes inimaginável. Antes de ser um resultado inesperado de tais políticas, este foi um efeito procurado, como meio de quebrar o movimento sindical e a resistência dos trabalhadores, abrindo caminho para a submissão à s exigências dos empresários. Hoje, os movimentos sociais encontram-se em refluxo exatamente por conta do desemprego, da precarização do emprego, da redução de perspectivas, do arrocho salarial, das saídas buscadas no mercado informal.
22. Este é o lado objetivo, econômico, do processo. Mas, ao mesmo tempo, se desenvolveu um novo ideário, uma nova ideologia, que se difundiu com uma enorme rapidez – para o que contribuiu a subserviência da mídia que, unânime, aderiu ao pensamento único neoliberal (aderiu não apenas por convicção, mas também por suborno – “compra de consciência”). Em pouco tempo, mudou-se a explicação sobre a pobreza: se, antes, ela era fruto dos baixos salários, agora ela passou a ser resultado da incompetência do próprio trabalhador. O desemprego também não é resultado da política do governo, mas da “inempregabilidade” do trabalhador – que não tem a qualificação que o mercado hoje exige. Os direitos sociais, trabalhistas, passaram a ser apresentados como a verdadeira causa do desemprego – e, portanto, deveriam ser flexibilizados para poder haver mais emprego. Em suma, a causa de todos os males estava nos próprios trabalhadores e nos seus próprios direitos, considerados excessivos. Até a reivindicação de aumento salarial, antes considerada normal, passou a ser apontada como crime lesa-pátria, porque seria motivo de inflação – o maior mal do país. Era preciso desmontar o que havia sido construído nos últimos 60 anos – o Estado nacional, as instituições públicas – para que o país pudesse crescer. Nós éramos errados, nós estávamos errados – em querer uma saúde pública integral, uma previdência integral, uma educação gratuita em todos os níveis (fundamental, médio e superior). Isto era uma idéia do passado, do atraso, a ser superada pela modernidade.
23. Esta verdadeira “ideologia da depressão nacional” minou as lutas populares, deslegitimou os movimentos reivindicatórios, abafou a crítica. Foram retiradas as condições objetivas para a mobilização – o desemprego e a necessidade de sobrevivência – e foi retirado o consenso que legitimava as lutas. Neste novo consenso, as lutas perdiam apoio, não tinham sentido. Se o governo estava fazendo tudo o que era bom e melhor, o que levaria algum grupo social a se levantar contra?
24. Somente depois de quatro anos de unanimidade e de submissão consentida é que o torpor começou a ser quebrado. A opinião pública já não se submete à pauta da mídia, já não apóia o governo. O discurso neoliberal está fazendo água por todos os lados: nenhuma de suas teses provou ser verdadeira. O governo substitui a ação pelo espetáculo pirotécnico: a cada novo escândalo, um novo programa de impacto é anunciado, substituindo o anterior – que não saiu do papel – verdadeira cortina de fumaça para encobrir o projeto que está efetivamente sendo implantado no país que é a submissão à s exigências dos mercados financeiros, dos grandes bancos e multinacionais.
25. Estamos começando, apesar da mídia, a sair do consenso neoliberal. A ideologia da depressão nacional começa a ser derrotada.
A violéncia.
26. O resultado da política econômica dos vários governos federais nas últimas décadas produziu um aumento da pobreza e da miséria. A situação pode ser descrita assim: é difícil arrumar emprego, é difícil ser tratado quando se está doente – a situação da saúde no Brasil é desastrosa -, é difícil conseguir lugar para o filho na escola e é difícil manter o filho na escola até o fim dos estudos. Ao mesmo tempo, a crise no setor da educação não estimula as crianças e jovens pobres a ficarem na escola.
27. Uma parte da população pobre e miserável – uma parcela da juventude desta população – passa a desacreditar na possibilidade de uma saída dentro da lei. Para esta parcela, viver dentro da lei significa carência permanente. Por outro lado, a população pobre e miserável é alvo dos mesmos valores difundidos por esta sociedade – seja pela vida cotidiana (o modo como se é atendido em repartições públicas, em hospitais, em bancos; o modo como se é tratado na rua, pela polícia), seja pela propaganda (televisada, sobretudo). Fica claro que a pessoa vale pelo que possui, pelo que ostenta. Ora, por suas condições de vida, pelo tipo de trabalho que pode conseguir e pelo salário que vai receber, o pobre dificilmente conseguirá os bens divulgados (a roupa, o tênis, os objetos do desejo de consumo). A saída é o crime: é o meio para o dinheiro fácil e rápido, para a ascensão imediata, apesar dos riscos.
28. Mais: o próprio crime passou por transformações nos últimos anos. A entrada em cena do narcotráfico está associada ao crime organizado. A criminalidade deixou de ser o fato de indivíduos ou grupos isolados, e se tornou uma ação coletiva organizada, fortemente autoritária e hierarquizada. Surgem a Falange Vermelha, o Comando Vermelho e outras. Agora, são quadrilhas que se enfrentam pelo domínio de espaços próprios, e quadrilhas cada vez mais bem armadas.
29. É claro que isto tem também a ver com a Polícia. A instituição encarregada de garantir a ordem pública já era parcialmente contaminada pela criminalidade: a exigência de propinas, a apropriação de parte do roubo executado por ladrões já existia antes. Os policiais nunca foram bem remunerados e uma parte deles usava destes expedientes para melhorar o salário. Mas é a partir dos anos 70 que uma parte da polícia entra no narcotráfico e disputa com outros criminosos o comércio da droga (é desta época o surgimento do Esquadrão da Morte, cujas vítimas eram traficantes concorrentes). É através desta parte corrupta da polícia que os bandidos obterão suas armas sofisticadas.
30. Nas favelas, nos últimos dez anos muda a relação entre os traficantes e os moradores organizados em associação. Se, antes, havia uma coexistência pacífica, onde cada qual respeitava o espaço do outro, pouco a pouco o tráfico vai interferindo na associação e impedindo sua atuação autônoma. Lideranças populares são ameaçadas.
A organização do crime torna-o mais ousado: surgem os sequestros de empresários, os assaltos a carros-forte, os assaltos com grande quantidade de participantes, as fugas financiadas. O tráfico também se torna uma alternativa de emprego para as crianças e jovens das favelas. Algo bem mais atrativo, mais fácil de se obter e mais bem remunerado que os empregos comuns. Em razão dos baixos salários, os pais têm enorme dificuldade de impedir o aliciamento de seus filhos.
Em conclusão:
31. É evidente a ligação entre a piora das condições de vida (achatamento salarial e desemprego) e o crescimento do crime organizado.
Sem que os governos se voltem para as necessidades da maioria será impossível uma solução mais duradoura para o atual problema da criminalidade.
32. É evidente a ligação entre o envolvimento de parte da polícia (que se torna parte do crime organizado) e o aumento da criminalidade.
Sem a reforma do aparelho policial será impossível uma solução mais duradoura para o atual problema
da criminalidade.
É possível recriar a cidade.
33. Mas é possível recriar a cidade, é possível recolocar a cidade na mão das pessoas, refazer uma cidade humana. Isto não é utopia: este sonho está sendo realizado em algumas cidades brasileiras em que os governos municipais – as prefeituras – decidiram fazer um governo voltado para as necessidades do povo. É o caso de Angra dos Reis, de Belo Horizonte, de Campinas, de Salvador, de uma cidade pequena como Icapuí no Ceará, de uma cidade grande como Porto Alegre e de algumas outras cidades espalhadas pelo país.
O que estão fazendo estas prefeituras? Estão colocando os recursos da prefeitura a serviço da população, investindo em saúde, em educação (escolas e professores), em moradia popular, em obras nos bairros mais necessitados, investindo em saneamento. Em algumas destas prefeituras, há assembléias por bairro para decidir onde é mais prioritário usar os recursos públicos para fazer melhorias.
34. E já há resultados visíveis: em algumas destas cidades, todas as crianças em idade escolar estão na escola (em Icapuí, por exemplo); em outras, diminuiu para um terço o número de crianças que morrem até 1 ano de idade (em Diadema, por exemplo). Em Icapuí, por exemplo, todas as gestantes são acompanhadas mensalmente por agentes de saúde – que são gente do povo – e cada criança que nasce recebe uma "Caderneta de Saúde da Criança". Em outras, as famílias que ganham menos (até 1 salário-mínimo) e que têm filhos em idade escolar estão recebendo uma ajuda extra da prefeitura (programa de renda mínima) (em Campinas, em Salvador e em Brasília, por exemplo); em outras, todas as crianças de rua estão sendo atendidas por projetos educacionais. Em Santos, por exemplo, a prefeitura conseguiu despoluir as praias que estavam quase todas poluídas, e agora a população pode tomar banho tranquilamente. Santos inovou também no tratamento de doenças mentais, evitando os internamentos – uma experiência que tem dados ótimos resultados. Além disso, nestes municípios, tanto a saúde como a educação estão melhorando porque estas prefeituras estão investindo no pessoal, pagando melhor os médicos, as enfermeiras, os professores, oferecendo cursos para que eles se aperfeiçoem em sua profissão; estão pagando melhor e exigindo um melhor serviço à população.
35. É bom lembrar que a prefeitura só recebe 15% da arrecadação dos impostos (os outros 85% vão para os governos federal e estadual). É com este pequeno montante que estas prefeituras estão promovendo uma enorme melhoria na vida do povo. O orçamento da prefeitura (receita e despesas) é exposto para a população, com total transparência. Algumas destas prefeituras já receberam prêmios de organismos internacionais por causa destas melhorias que conseguiram.
Isto está acontecendo agora! Mas a maioria de nós não conhece estas informações. Por que os meios de comunicação não divulgam estes fatos? A informação transmitida para a população pelos meios de comunicação (sobretudo pela televisão) acaba misturando toda a política como se fosse uma mesma coisa, uma mesma coisa ruim: como se todos os deputados fossem iguais e desonestos (escondendo o fato de que há alguns deputados sérios, honestos, trabalhando a serviço da população); como se todas as prefeituras fossem iguais, só trabalhassem a serviço de uma elite (escondendo que há prefeituras conseguindo melhorar a vida do povo porque se dedicam a governar o município como um serviço público). É preciso exigir a democratização dos meios de comunicação para que nós tenhamos acesso a todas as informações.
36. A recriação da cidade é possível: depende de nós, do nosso voto, dos nossos movimentos, da nossa organização, da nossa pressão, da nossa mobilização.
Datos para citar este artículo:
Ivo Lesbaupin. (2005). Movimentos populares e a conquista do espaço urbano (2). Revista Vinculando, 3(2). https://vinculando.org/brasil/movimentos_populares1.html
Wesley dice
quem é o autor deste artigo?
Revista Vinculando dice
Oi Wesley, é Ivo Lesbaupin. Por favor disculpa o erro, e receba um abraço desde o México.