A economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado.
Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito
praticam o terrorismo contra os países pobres, e contra os pobres de todos os países,
com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham ao melhor dos "malandros"
E. Galeano
Resumo
Sobre endividamento sem fim + estagnação x submissão = Empobrecimento e dependência sem fim
Essa é a equação suicida vigente no Brasil, e em outros países da América Latina e o Caribe por décadas. O texto examina os fatores que geram e perpetuam esse processo trágico para os povos do Sul. Além de marcada pelo que consideramos uma irresponsabilidade fiscal, social e ambiental, a gestão do endividamento tem sido um fator de estagnação da economia interna e uma arma de submissão. Como Prometeu,[2] a economia dos países devedores gera um fígado de riquezas a cada noite, durante o dia vem o urubu e come o fígado. Um dia após o outro. Sem fim. Até quando?
Há evidencias de um plano orquestrado pelos Estados Unidos, com atores preparados para garantir, por via de corrupção, ameaças, morte ou guerra, que nossos países continuem alimentando o império do Norte com suas riquezas naturais, suas economias e ainda com seu cérebro. Nesse sentido, a dívida tem uma inevitável dimensão política, que tem se traduzido em guerras, em vários momentos da História.
Finalmente, examino alguns dos caminhos de resistência social ao círculo vicioso do endividamento, do empobrecimento e da submissão, e apresento dois instrumentos de luta que podem se complementar eficazmente para mudar a situação em favor dos povos do Sul: a auditoria financeira e a auditoria social e ambiental.
A dívida como arma de submissão econômica
Observemos a gravidade da expressão sem fim. Ela corresponde ao círculo vicioso do quanto mais pagamos, mais devemos e mais empobrecemos. Corresponde ainda ao desígnio do Império do Norte, os EUA, de submeter as nações devedoras a ofertas "irrecusáveis" de empréstimos internacionais, que em troca realizam grandes obras de engenharia, executadas por empreiteiras de construção civil, de base nacional (no caso de países "emergentes", como Brasil) ou estadunidenses (em outros casos). O governo local ganha a imagem de "boa governabilidade", de promotor do crescimento econômico, e de bom pagador, gerando popularidade e garantindo a reeleição. Porém, a verdade é que esse tipo de governo escolhe deixar-se aprisionar nas garras do projeto imperial dos EUA. As empresas transnacionais se enriquecem e ampliam a sua presença em todos os setores rentáveis da economia. Os EUA ganham favores, como tratados de livre comércio, acesso aos recursos naturais, concessões financeiras, contratos públicos, bases militares, apoio para ações militares americanas em outros países, etc. O país devedor, além de ficar mais endividado, fica geralmente mais pobre e mais dependente.
Vejamos o caso do Brasil. Durante o governo F.H. Cardoso (1995-2002), a dívida interna em títulos virou um grande negócio. A parte correspondente aos títulos do governo no poder de atores privados, como mostra o quadro do Ministério da Fazenda, que era de R$ 32,1 bilhões (9,91% do PIB) no início do governo Cardoso, em dezembro de 1994, aumentou para R$ 558,9 bilhões (41,52% do PIB), ou 17,36 vezes mais, para fins do seu mandato! A dívida bruta total da União (interna e externa) cresceu de R$ 87,8 bilhões (25,13% do PIB) em dezembro 1994 para R$ 1.103,9 bilhões (82,01% do PIB) em dezembro 2002. Um crescimento real de 226,34% em relação ao PIB, comparado com dezembro 1994.
Dívida Líquida Total da União (Interna e Externa)
Fonte Ministério da Fazenda
Base: Junho 2006
R$ bilhões
Itens | 1994 | % PIB | 2002 | % PIB | Jun/06 | % PIB |
DMIM | 32,1 | 9,19 | 558,9 | 41,52 | 1.014,7 | 50,72 |
DMIBC | 33,5 | 9,59 | 282,1 | 20,96 | 296,0 | 14,80 |
DET | 22,2 | 6,35 | 262,9 | 19,53 | 139,9 | 6,99 |
Total | 87,8 | 25,13 | 1.103,9 | 82,01 | 1.450,6 | 72,51 |
DMIM: Dívida mobiliária interna em poder do Mercado
DMIBC " Dívida mobiliária interna em poder do Banco Central
DET " Dívida Externa Total
Para pagar os juros dessa dívida, o governo adotou um artifício criado pelo FMI para todos os países devedores do Sul: a meta do superávit primário, que consiste em reservar obrigatoriamente um porcentual das receitas públicas antes de comparar receitas e gastos do Orçamento. O governo FHC acordou com o FMI que essa porcentagem seria de 3,5% do PIB. Em 2002, o superávit realizado foi de 3,89% do PIB, maior do acordado com o FMI!. Porém, o governo pagou aos credores da dívida pública o equivalente ao 8,47% do PIB e o déficit público foi de -4,58% do PIB! F.H.Cardoso concluiu seu mandato pagando aos credores públicos R$ 120 bilhões (apenas R$30 bilhões procedentes do superávit primário), enquanto foram investidos somente R$ 71 bilhões em todas as áreas sociais somadas. Não podemos nos iludir de que tamanha sangria de fundos públicos tenha diminuído as dívidas: FHC deixou para Lula uma dívida pública de 1,103.9 bilhões de reais!
Lula foi eleito para mudar essas opções de política econômica, para desprivatizar a gestão do orçamento público, com o fim de investir nas principais necessidades sociais e econômicas do país, iniciando um caminho de retomada do desenvolvimento endógeno do Brasil. Vejamos o que a equipe de política econômica de Lula conseguiu realizar, com o aval do mesmo Lula, repetido muitas vezes. Em junho 2006 a dívida total bruta da União tinha alcançado R$ 1,451 bilhões (72,51% do PIB). Redução real de 11,58% em relação ao PIB de 2002; e, ao mesmo tempo, um aumento bruto de R$ 346,7 bilhões em relação a 2002.
O montante da dívida interna reflete um problema gravíssimo da gestão macroeconômica. Na raiz dela está a enganosa convicção de que não há outro caminho para governar o país que não seja dando prioridade total aos pagamentos externos, e atraindo investidores do exterior a qualquer custo. O fator mais relevante do crescimento da dívida interna tem sido a conversão em reais da moeda estrangeira que entra no país, seja na forma de empréstimos, seja como investimento privado, seja como pagamento das exportações brasileiras. E a remuneração dessa dívida? É altíssima, pois é a dívida interna é remunerada pela mais alta taxa de juros do mundo! Enquanto as taxas dos países ricos variam entre 2,5% e 6%, no Brasil a taxa nominal ainda se eleva a 14,25% (demorou dois anos para cair de 19% para esse nível).
Tomando como base junho de 2006, cabe destacar que o Tesouro Nacional detêm R$ 448,6 bilhões nas mãos dos Estados e Municípios, sendo que os cinco estados mais ricos da federação devem 73,90% da referida dívida, como segue: São Paulo (41,34%); Minas Gerais (11,41%); Rio de Janeiro (10,37%); Rio Grande do Sul (7,64%); Paraná (3,14%), além de R$ 175,1 bilhões em receitas junto a Autarquias, Fundos e Fundações.
Em junho 2006, considerando também a dívida externa do setor privado (cujos contratos são frequentemente garantidos pelo Governo Federal) de US$ 52 bilhões, ou R$ 113,8 bilhões (5,69% do PIB), a dívida bruta total, interna, externa, pública e privada era de R$ 1.564,4 bilhões (78,19% do PIB).
Num mundo dominado pelo neoliberalismo econômico, tudo vira mercadoria, mesmo a dívida financeira. Portanto, tomando como base junho de 2006, do total da dívida da União um montante de R$ 296 bilhões (14,80% do PIB) ficou nas mãos do Banco Central do Brasil por falta de compradores no mercado. A dívida era maior que a demanda do mercado.
Que ironia ver o governo promover programas sociais, como o Programa Bolsa Família, estabelecer cotas nas universidades e outras medidas de caráter pontual e compensatório, visando reduzir a carência daqueles que estão absolutamente excluídos do poder de compra e do poder do saber, enquanto gasta quase dezoito vezes mais em juros e amortizações graciosamente transferidos aos credores internos e externos! Se a economia e as finanças nacionais fossem administradas com responsabilidade e sentido cívico, elas seriam colocadas a serviço das necessidades da sociedade em geral, de todas as regiões e do país. Metas de emprego, educação, saúde, moradia, saneamento, acesso à água, remuneração cidadã[3] e outros cuidados sociais, teriam prioridade sobre a meta de inflação ou outras metas econômico-financeiras. Assim, chegaríamos a não mais precisar de programas sociais especiais, nem de fundos estrangeiros para financiá-los.
O fato de que o Brasil paga sempre mais, e adquire empréstimos para pagar juros, ao invés de investir na produção de riquezas, perpetua o endividamento, e gera uma dependência fatal do governo em relação aos credores. O postulado que guia essa política é: não há outro caminho para governar o Brasil senão ceder o poder de governar aos credores internacionais. Essa é a lógica que tem prevalecido. Porém, do ponto de vista da Nação brasileira, é uma lógica econômica e politicamente irracional e deve ser frontalmente combatida.
Os recursos tributários federais têm sido abundantes. A arrecadação atinge 39% do PIB e os maiores contribuintes são as classes média e baixa, dada a estrutura tributária injusta que prevalece no Brasil. Uma significativa parcela dos impostos é indireta, ou seja, está embutida nos produtos comercializados, cujas alíquotas são iguais para ricos e pobres; enquanto a renúncia fiscal que o governo concede, beneficia investidores estrangeiros, empresas transnacionais livres de impostos sobre as suas remessas, e os grandes ricos do país. Mas, se uma porção tão grande do orçamento é dedicada aos credores financeiros do governo, por escolha do próprio governo, é evidente que os recursos não estarão disponíveis para outras despesas. Um dos fatores de crescimento econômico são justamente os investimentos públicos. Com uma parcela desprezível do orçamento dedicada aos investimentos públicos durante uma década inteira, não é surpreendente que a economia esteja andando devagar, quase parando. E sem crescer, a tendência é que os empregos e os salários se reduzam. Por outro lado, não restam suficientes recursos para os serviços sociais que são de responsabilidade do governo.
A dívida como arma de submissão política
Porém, é preciso ir mais longe na pesquisa para entender a tragédia na qual estamos metidos. É necessário entender que o sobre-endividamento[4] é uma arma política, que vai além da irresponsabilidade gerencial do governo.
"Eu tinha dois objetivos básicos no meu trabalho. Primeiro, tinha que justificar os enormes empréstimos internacionais que levam rios de dinheiro de volta para a MAIN[5] e outras companhias americanas (como Bechtel, Halliburton, Stone&Webster e Brown&Root), por meio de gigantescos projetos de engenharia e construção. Segundo, eu trabalhava para a falência de países que recebiam esses empréstimos (depois de ter pago para a MAIN e outras contratadas americanas, é claro) para que eles se tornassem dependentes para sempre dos credores e, assim se convertessem em alvos fáceis quando precisássemos de favores, incluindo bases militares, votos na ONU, ou acesso ao petróleo e recursos naturais" (Perkins, 2005 38).
Quem escreve é um ex-Assassino Econômico chamado John Perkins (Perkins 2005, 9). É um livro impressionante, justamente por ser um relato testemunhal do mesmo sujeito que viveu essa "profissão" criminosa, em nome do império americano. No livro ele explica o que está por trás das políticas de endividamento: a submissão dos governos dos países devedores aos interesses dos grandes grupos transnacionais, sobretudo os de base americana; e a renúncia, por esses governos, Ã soberania em relação ao desenvolvimento nacional, em troca de manter a "governabilidade". No seu livro, Perkins conta que, em geral, quando os Assassinos Econômicos fracassam, são enviados os Chacais " agentes da CIA, com diversos mandatos, desde criar instabilidade econômica até matar presidentes. E quando também eles fracassam, o império envia o Exército, ou os "Marines" (fuzileiros navais), liderados habitualmente por oficiais anglo-saxões e compostos por jovens em sua maioria afro-americanos, latinos, asiáticos, etc., treinados para matar e marcados para morrer física ou psiquicamente.
"O livro foi dedicado aos presidentes de dois países, homens que tinham sido meus clientes, aos que eu respeitava e considerava como consciências semelhantes à minha " Jaime Roldós, presidente do Equador, e Omar Torrijos, presidente do Panamá. Os dois acabavam de morrer em catástrofes aéreas. A morte deles não foi acidental. Eles foram assassinados porque se opunham à quela fraternidade de chefes de corporações, de governos e de bancos, cuja meta é o império mundial. Nós, os Assassinos Econômicos, fracassamos em nosso trabalho de cooptar Roldós e Torrijos, e os outros tipos de matadores, os chacais ao serviço da CIA que vinham imediatamente depois de nós, entraram em ação" (Perkins, 2005:9)
Este testemunho de forte impacto revela uma estratégia baseada na ética macabra: para o crescimento do império através da submissão de outros países e do controle dos seus recursos e das suas elites, qualquer meio é considerado bom e justo, inclusive o assassinato. Esse foi o caso de pequenos países de América Latina, como Equador e Panamá, mas foi também o caso de todos os países que sofreram ditaduras sanguinárias, entre eles a maior parte dos países de América do Sul durante os anos 60 e 70, todas apoiadas pela potência imperial da América do Norte e, consequentemente, pelos organismos financeiros internacionais. Tudo isso em nome da democracia e da liberdade.
O caso do Equador é com certeza um dos mais dramáticos: um país rico em petróleo que fica endividado e passa a pagar eternamente uma dívida que não deveria existir. Durante décadas o país foi controlado por ditadores e oligarquias de direita, manipuladas pelos interesses estadunidenses. Foram anos em que as empresas petrolíferas dos EUA penetraram na floresta amazônica equatoriana e conseguiram controlar regiões habitadas por povos nativos, com o objetivo de produzir e exportar petróleo. Essas empresas foram co-responsáveis pelo crescente endividamento externo no qual se enredou o Estado equatoriano, confiando na promessa de que poderia pagar as dívidas com as receitas que obteria do petróleo. Com elas o Equador contratou construtoras americanas para construir rodovias, parques industriais, represas e usinas hidrelétricas, projetos de produção e distribuição de energia.
No princípio dos anos 1970, o Equador elegeu democraticamente um governo nacionalista, liderado por Jaime Roldós, professor universitário e advogado. Roldós acusou o Summer Institute of Linguistics (SIL), grupo evangélico dos EUA, de conluio com empresas de petróleo. O pretexto do SIL era estudar, registrar e traduzir as línguas nativas. No Equador, o SIL concentrou-se na tribo Huaorani. Onde existia uma alta probabilidade de existência de petróleo, o SIL aparecia e estimulava o povo nativo a se deslocar para outra terra, onde receberia alimentação gratuita, moradia, roupas, tratamento médico e educação no estilo missionário. A condição: que transferissem a posse das terras para empresas de petróleo. Roldós foi eleito com o mandato de retomar para Equador o controle dos combustíveis fósseis, negociando novos termos com as petrolíferas estrangeiras. Em princípios de 1981, seu governo apresentou formalmente ao Congresso o projeto de lei dos hidrocarbonetos, que redefinia a relação do país com aquelas empresas.
As empresas, lideradas pela Texaco, reagiram tentando desmoralizar Roldós em público, acusando o Presidente de ser um outro Fidel. Roldós não se intimidou. Denunciou a conspiração das empresas com o SIL contra a soberania do Equador, e ordenou que o SIL deixasse o país[6]. Dois dias depois o helicóptero no qual ele viajava para uma pequena aldeia do sul do Equador, explodiu. O seu sucessor, Osvaldo Hurtado, assumiu a presidência, e reintegrou o SIL e as empresas petrolíferas que o patrocinavam. No final daquele ano o país assinou um acordo com a Texaco e outras empresas para prospecção no golfo de Guayaquil e da Bacia Amazônica.
25 anos depois, o Equador entra na agenda de "segurança" dos EUA como ameaça potencial aos interesses desse país, por considerar "populismo radical" do Estado equatoriano a decisão de 15 de maio de 2006 de declarar a caducidade do contrato com a companhia petrolífera Ocidental (Oxy) de base americana, em represália pela venda "por debaixo da mesa" de uma parte das suas posses a uma empresa canadense sem pedir autorização ao Estado equatoriano, como a lei indica (Mullighan, 13.9.06: 7). Em 2005, diz uma matéria da revista Business Week, citada por esse autor, revela que a empresa teve uma receita de US$ 15,2 bilhões, dos quais US$ 5,2 bilhões foram lucros. A estratégia do império que eliminou Jaime Roldós continua ativa nesse país, enquanto o Equador continua escravizado aos pagamentos de uma dívida que não precisava existir, pois possui grandes riqueza em combustíveis fósseis e em biodiversidade.
No Brasil, o governo FHC, de fato, terá sido um excelente aliado dos Assassinos Econômicos na tarefa de acabar com a autonomia e a independência do Brasil, aprofundando o endividamento interno e externo, concentrando ainda mais a renda e a riqueza, privatizando em poucos anos, e por meios corruptos, o patrimônio público que foi construído durante décadas pela nação brasileira e "fazendo o que o seu mestre do Norte mandar".
E o governo Lula? A dívida interna, conectada à dívida externa aumenta hoje em níveis dramáticos, levando uma parte enorme do orçamento, cada ano, para o pagamento dos juros. Só em 2005, o governo pagou R$ 139 bilhões aos credores, ou uma média de R$ 11,6 bilhões por mês, enquanto gastava no ano todo apenas R$ 4 bilhões com a reforma agrária, R$ 16 bilhões com a educação, R$ 36 bilhões com a saúde. E mantém a taxa de juros real mais alta do mundo. Receita suicida para a sociedade e a economia nacional; e fonte de enriquecimento espúrio para os 20 mil grupos familiares que detêm os títulos daquela dívida. As melhoras sociais estão acontecendo para milhões dos mais miseráveis, mas são migalhas apenas, não têm nenhum efeito estrutural transformador. É a política econômica subordinada aos interesses das elites brasileiras e estrangeiras que dá corpo à economia brasileira hoje e a que reduz a sociedade à submissão.
A população brasileira e a do continente latino-americano devem compreender esse mecanismo destrutivo, que garante o crescimento do império e o enriquecimento dos ricos do mundo, e conta com a cumplicidade das elites políticas e econômicas brasileiras. Quebrar o círculo vicioso do endividamento é uma condição essencial para que a economia volte a crescer, a redistribuir a riqueza e a conquistar a soberania sobre os seus recursos naturais e seu sistema produtivo. É condição essencial para que o Brasil e o continente todo possam afirmar o seu direito a um caminho próprio de desenvolvimento econômico e tecnológico, social e humano. Se não for assim, os povos do continente, colonizados e submetidos a diferentes escravidões ao longo de mais de cinco séculos, cujo presente é já tão conturbado, deixarão de ter futuro.
Estratégias para a superação da submissão e da dependência
Auditoria " Brasil tem jurisprudência nessa prática. Em 1931, o presidente Getulio Vargas promoveu uma auditoria da dívida externa brasileira. O resultado foi surpreendente: somente 40% da dívida que estava sendo honrada com os credores, sobretudo com a Inglaterra, correspondiam a contratos documentados. Não havia registro dos valores das remessas nem contabilidade regular da dívida externa. Vargas convocou os credores e renegociou com eles a anulação de uma parte importante da dívida, apesar de não ter exigido a reparação pelos pagamentos indevidos que Brasil tinha feito em beneficio da potência imperial européia.
Ruiz Dias (2003:162 " 170) apresenta a jurisprudência que gerou o princípio do direito internacional de que as dívidas do Estado são diferentes das dívidas do regime. As primeiras são contratadas por interesse público, enquanto as dívidas de regime respondem a estreitos interesses governamentais e podem ser geradas por governos dominadores ou usurpadores. Os casos históricos apresentados por Ruiz dão fundamento ao conceito de dívida odiosa, e ao preceito legal da sua anulação. São eles: a Rússia, a respeito da dívida turca em 1878; a França, quando da anexação de Madagascar; a Grécia frente à dívida Otomana, em 1922-23; a Alemanha, a respeito à dívida austríaca após a anexação, em 1938; a Polônia, a respeito da dívida sob a ocupação alemã e prussiana para a colonização daquele país; os Estados Unidos independentes no fim do século 18, frente à dívida pública exigida pela Coroa Britânica; o México, frente à dívida assumida pelo governo precedente em 1860; os Estados Unidos em 1898, defendendo o direito da Cuba independente de recusar-se a pagar as dívidas contraídas pela Coroa Espanhola e destinadas sobretudo a armar seu exército contra os cubanos; os Estados Unidos em 1922, frente à dívida da Costa Rica contraída com Inglaterra pelo governo de Frederico Tinoco, identificado como usurpador.
O autor argumenta que a situação contemporânea de vários países deve ser avaliada sob o mesmo olhar, entre eles a Argentina, onde um juiz federal demonstrou a existência de uma conivência entre a ditadura militar, o FMI e os bancos privados internacionais. O juiz decidiu que algumas instituições financeiras internacionais e empresas financeiras privadas fizeram empréstimos a uma ditadura (governo usurpador) que planejou e executou crimes contra a humanidade. "O direito internacional demonstra que todos os atos governamentais, inclusive os atos jurídicos através dos quais um governo usurpador contratou as dívidas públicas, são passíveis de anulação" (Ruiz, 2003: 167). Se aplicarmos a mesma regra aos 21 anos de ditadura militar no Brasil, podemos considerar que toda ou parte da dívida pública, – seja a que foi contraída por órgão público, seja a que foi estatizada no período 1964-1985, equivalente a US$ 80 a 100 bilhões, é qualificada como dívida odiosa, contraída pelos usurpadores, e é passível de reparação.
O instrumento legal para fazer viável um processo soberano de renegociação com os credores, com sólida base financeira, política e jurídica, é a auditoria pública das contas do país. Toda empresa tem que fazer auditoria das suas contas, prestar contas aos seus acionistas e ao público do uso dos seus recursos. Isso porque toda empresa, além dos seus objetivos econômicos, tem responsabilidade social e ambiental pelos seus atos. Muito mais um governo.
A Rede Jubileu Sul Brasil promoveu em 2000, com o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, um plebiscito nacional sobre o pagamento das dívidas externa e interna e o acordo com o FMI. O sucesso do plebiscito, cujos resultados foram apresentados aos três poderes da República e aos grandes meios de comunicação, gerou a Campanha pela Auditoria Cidadã, que tem estudado os contratos da dívida em poder do Senado Federal, mas não conseguiu localizar uma parte importante deles. Através de deputados aliados, a Auditoria Cidadã apresentou três pedidos de informação, dois ao Ministério da Fazenda, sobre os credores da dívida interna federal e os contratos da dívida externa não encontrados no Senado; e um ao Congresso Nacional, pedindo acesso aos documentos que serviram de base para o relatório da Comissão Mista da Auditoria da Dívida, de 1989 (Fattorelli, 29.3.2006: 6).
No relatório final daquela Comissão, o deputado federal Luiz Salomão indica a possibilidade de redução do montante da dívida externa brasileira; propõe a dedução do principal consignado pelos bancos que emprestaram com juros flutuantes ou excedentes, avaliados, em simulações pelo Banco Central, em US$ 34 a 62 bilhões; propõe retomar as investigações e os processos jurídicos tendentes a recuperar as perdas resultantes de fraudes e negócios ilícitos; e responsabilizar penalmente os responsáveis internos e os cúmplices externos; e repatriar as divisas evadidas clandestinamente.
Porém, a Comissão não concluiu o seu trabalho. Falando desse fato, o deputado Salomão declarou que "manobras impediram que o relatório fosse votado na Comissão Mista… Sem apoio da maioria da Comissão, o parecer foi levado para exame da Plenária do Congresso… os partidos majoritários na Câmara e no Senado escolheram a omissão."
Dentre os objetivos da auditoria da dívida estão: conhecer como foram aplicados os empréstimos, se eles tiveram alguma utilidade pública, que atores beneficiaram, o grau de co-responsabilidade dos credores e, muito importante, que países e instituições financeiras são efetivamente devedoras de uma dívida financeira, social e ecológica com o país e o povo. A auditoria financeira, portanto, é só uma das dimensões deste desafio. Os governos e a sociedade civil têm que introduzir nas suas agendas a auditoria dos efeitos sociais e ambientais da dívida financeira.
A Rede Jubileu Sul Américas trabalha com a convicção de que os povos de América Latina e do Caribe são, de fato, credores, e não devedores. Para demonstrar isso, faz-se necessário associar a auditoria financeira à auditoria das dívidas sociais, e da dívida ecológica " histórica e atual. De que montantes e por quanto tempo têm sido privados os setores empobrecidos das nossas sociedades do seu direito ao trabalho, educação, saúde, saneamento, água, moradia digna, acesso aos bens e recursos produtivos, segurança, e por que os governos destinaram fundos públicos em quantidades desproporcionais ao pagamento de juros à s instituições financeiras. Qual é o déficit de terras, que sofrem as famílias camponesas sem terra (no Brasil são mais de quatro milhões as famílias de trabalhadores sem terra); de moradias, que sofre a população urbana e rural (no Brasil um jornal estimou o déficit em 23 milhões); de professores e de vagas nas escolas para crianças e jovens; de pessoal médico e de centros de saúde, de acesso à água limpa e a sistemas sanitários higiênicos. Que valores estão associados ao esgotamento e à destruição de recursos naturais e de ecossistemas em conexão com atividades impostas pela dívida e pelo pagamento dos seus juros?
Regulação do endividamento em nível nacional. Há propostas objetivas de fórmulas para regular a dívida em nível nacional, baseado na noção de que é o cidadão o "pagador de última instância" das dívidas contraídas pelos governos, pois eles devem proporcionar fundos fiscais que tornem viável aqueles pagamentos (Marichal, 2003: 20ss). Entre essas fórmulas: a adoção de políticas que limitem o endividamento público, em especial o externo no curto prazo; a realização de auditorias que demonstrem que há dívidas ilegítimas e ainda ilegais que não devem ser pagas; a obrigação pelos tomadores privados de empréstimos externos de contratar um seguro com uma empresa internacional de seguros, a fim de garantirem que os contribuintes não tenham que assumir responsabilidades em caso de falência ou de dívidas pendentes de particulares (Marichal, 2003: 21).
à urgente que governos, em colaboração com organizações e redes sociais e ecológicas, estabeleçam um grupo de indicadores sociais e ambientais que sejam úteis para a avaliação da legitimidade ou não das dívidas financeiras, e também para o monitoramento anual dos efeitos. Tais indicadores servirão também como metas para orientar a definição de políticas econômicas pelos governos, e de marcos normativos da ação dos capitais públicos e privados. São necessárias instituições públicas de monitoramento da dívida pública em cada país endividado, capazes de analisar e informar a população sobre a política de endividamento e de realizar estudos de custo/beneficio pelo menos dos empréstimos de impacto estratégico. Tais instituições poderão também desenvolver mecanismos de controle sobre parlamentares, e o poder executivo em relação à contratação e ao uso dos empréstimos.
No Brasil colaboramos com o Fórum Brasil de Orçamento (FBO) que monitora as finanças da União e oferece informações e análises sistemáticas ao público contribuinte. Neste momento, o FBO está liderando uma campanha, junto ao Congresso Nacional e à população, pela transformação da Lei de Responsabilidade Fiscal em Lei de Responsabilidade Fiscal e Social. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi aprovada durante o governo Cardoso e obriga os governos municipais, estaduais e federal a dar prioridade ao pagamento das dívidas financeiras, ao administrar os seus respectivos orçamentos. O objetivo de fundo é subordinar os pagamentos das dívidas financeiras à prioridade dos investimentos nas áreas que são obrigação social do Estado. Com a nova Lei de Responsabilidade Fiscal e Social, o FBO pretende pressionar por métodos de formação de preços que incluam o custo total " econômico-financeiro, social e ecológico " da produção e do comércio de bens e serviços. Esses métodos obrigam a uma re-avaliação da viabilidade de investimentos produtivos e da sustentabilidade dos patamares de consumo e de produção atual.
Regulamentação do endividamento e do movimento dos capitais em escala internacional. Adotar políticas de controle de fluxos de capital estrangeiro para dentro e fora dos países do Sul e submeter as instituições financeiras internacionais a um sistema regular de auditoria das suas responsabilidades como agências públicas, pode ser o caminho seguro para estabelecer regras sobre o endividamento em escala internacional. Raffer (2003:173ss) insiste na proposta de um processo de arbitragem justo e transparente, baseado no capítulo 9 da Lei de Insolvência dos municípios dos EUA. A proposta inclui um painel independente de árbitros internacionais nomeados ad hoc pelo devedor e pelo credor, para ouvir a população afetada, diretamente representada por suas organizações e associações. As informações geradas pela auditoria poderiam ser usadas pelo devedor durante o processo de arbitragem. O pressuposto é que, se a auditoria identifica que há uma dívida ilegal ou ilegítima que não deve ser paga, o caminho será um entendimento direto entre devedor e credor. Se não conseguem chegar a um acordo, a arbitragem pode agir como uma instância neutra de conciliação de interesses e dar reconhecimento oficial a uma decisão que seja justa e transparente.
Financiamento do desenvolvimento " É urgente superar o mito nefasto de que não há desenvolvimento econômico sem um aporte maciço de capitais do exterior. É preciso diminuir a dependência dos capitais externos, desenvolvendo instrumentos financeiros e monetários tradicionais e novos que valorizem o potencial interno do mundo empobrecido. Uma reforma fiscal que inclua um sistema progressivo de impostos, um controle social sobre a renúncia fiscal pública, e uma fiscalização que impeça a sonegação de impostos e a fuga de capitais teria impacto na mobilização de recursos nacionais para o desenvolvimento. No nível regional, a criação de um Banco do Sul está em discussão, como instrumento de mobilização de fundos dos países do Sul para financiar o desenvolvimento. A proposta de um Banco e um Fundo Monetário do Sul só faz sentido se eles forem orientados a um processo de desenvolvimento fundado nos valores da cooperação, da ética, da justiça, da democracia participativa, da solidariedade, do respeito à diversidade, da paz. Necessitamos de um conceito de desenvolvimento próprio dos povos, endógeno, solidário e sustentável. Necessitamos desenvolver estratégias de integração que estimulem intercâmbios solidários entre as comunidades de cada país e entre os países da região.
Um diálogo está em curso sobre a criação de uma moeda contábil, material ou virtual, da área do MERCOSUL ou, ainda melhor, de América do Sul, que seria administrada pelo Banco do Sul, ou por um consórcio dos bancos centrais dos países membros, e que sirva para intermediar os intercâmbios comerciais regionais sem o uso das moedas do Norte. Todas estas são medidas que aumentam a autonomia nacional e regional, e reforçam a capacidade de implementação de projetos próprios de desenvolvimento, de caráter endógeno, democrático, solidário e sustentável.
O desafio do poder popular " A questão central é a premissa dessas propostas, que é a essência do problema, isto é, o político e o humano. Quem deveriam ser os sujeitos do desenvolvimento? Os sujeitos devem ser os portadores dos potenciais, recursos e atributos a desenvolver. Portanto, são os mesmos povos os que devem ter o direito a exercer o papel de sujeitos do seu próprio desenvolvimento, individual e coletivo, local, nacional, continental e global. A eficiência e a eficácia de todas as propostas e instrumentos que estamos discutindo dependem de dois fatores essenciais: a vontade política dos governo e a correlação de forças. Para pôr em andamento um movimento de transformações econômicas e sociais, é preciso trabalhar simultaneamente por mudanças na consciência, na visão do mundo, no universo conceitual e no imaginário das pessoas. A educação social e popular para o empoderamento é uma chave. Outra é mobilizar e organizar cada vez mais pessoas para, por um lado, denunciar os atores e fatores das desigualdades e das injustiças sociais, a irresponsabilidade fiscal, social e ambiental das elites; por outro lado, para definir e implementar o seu próprio projeto de desenvolvimento, criar suas próprias iniciativas econômicas e financeiras, desenvolver uma práxis de consumo ético e sustentável. Finalmente, faz-se necessário um forte movimento em cada país de América Latina e do Caribe para pressionar os centros de poder a favor das mudanças e de políticas coerentes com povos decididos a ter em suas mãos o seu desenvolvimento e o seu futuro.
Bibliografia
- Colby, Gerald and Dennet, Charlotte, 1995, "Thy Will be Done, The Conquest of the Amazon: Nelson Rockefeller and Evangelism in the Age of Oil", HarperCollins, New York.
- Fattorelli, Maria Lucia, 26.3.06, "Dívidas Externa e Interna: Auditoria e a Luta por Justiça", Campanha Jubileu Sul Brasil, São Paulo.
- Marichal, Carlos, 2003, "Evitando Futuras Crises da Dívida na América Latina: Lições da História e Algumas Propostas", em Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania, org. Maria Lucia Fattorelli Carneiro, Campanha Jubileu Sul Brasil, Contraponto, Rio de Janeiro
- Mullighan, José, 13.9.06, "Ecuador y otros Estados son fichados por los militares estadounidenses: Comando Sur de EUA combate al Populismo Radical en América Latina", ALTERCOM, Comunicación para la Libertad.
- Olmos, Alejandro S/dcia, Causa n. 14.467, Expediente n. 7.727. Sentencia de 13.7.2000, conocida como Sentencia Olmos, Buenos Aires.
- Perkins, John, 2005, "Confissões de um Assassino Econômico", Cultrix, SP.
- Raffer, Kunibert, 2003, "Características Comuns das Auditorias e Insolvência Soberana", em Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania, org. Maria Lucia Fattorelli Carneiro, Campanha Jubileu Sul Brasil, Contraponto, Rio de Janeiro.
- Ruiz Diaz, Hugo, 2003, "Dívida Odiosa ou Dívida Nula", em Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania, org. Maria Lucia Fattorelli Carneiro, Campanha Jubileu Sul Brasil, Contraponto, Rio de Janeiro.
* "Dívida pública, auditoria popular e alternativas de poupança e investimento para os povos da América Latina e o Caribe"
Primeiro simpósio internacional; Caracas, Venezuela; 22, 23 e 24 de setembro de 2006
[1] Economista e educador do PACS " Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul, Rio de Janeiro, e membro associado do Instituto Transnacional, Amsterdam.
[2] Segundo a lenda grega Prometeu era o semi-deus que trouxe o conhecimento do fogo (do saber) Ã humanidade e, por isso, foi punido por Zeus. O castigo era ficar acorrentado no Monte Cáucaso durante 30 mil anos, tendo seu fígado comido por uma águia; cada dia o fígado crescia, e cada dia a águia o devorava.
[3] Por remuneração cidadã entendemos uma quantia mensal que o setor público dedicaria a cada cidadã e cidadão do País, para garantir do direito básico à vida. "Todos os cidadãos brasileiros, de qualquer condição econômica e social, deverão dispor de uma renda básica mensal por tempo indeterminado. Ou por toda a existência de cada um." (Senador Eduardo Suplicy).
[4] Tomar empréstimos é prática normal de gestão, seja pública ou privada. O problema está em endividar-se em demasia, ou endividar-se para pagar juros, ou aceitar condições que podem tornar a dívida impagável. Disso deriva o sobre-endividamento.
[5] Trata-se da Chas.T.Main, Inc., "uma empresa de consultoria internacional que mantinha um perfil muito discreto e era encarregada dos estudos para determinar se o Banco Mundial deveria emprestar ao Equador e seus países vizinhos bilhões de dólares para construir usinas elétricas e outros projetos de infraestrutura." (Perkins, 2005: 32
[6] Os ex-diretores da CIA, General Colby, com Charlotte Dennet, contam detalhes de todo o processo em seu livro Thy Will be Done (1995:813).
Datos para citar este artículo:
Revista Vinculando. (2007). A dívida como uma arma politica de submissão: Caminhos de resistência. Revista Vinculando, 5(1). https://vinculando.org/economia_solidaria/divida_como_arma_politica_de_submissao.html
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