Vimos no primeiro capítulo que a sociedade salarial ou sociedade do trabalho está em crise. O emprego de tempo integral e para todos já não existe mais e o tempo em que o foi não voltará. No segundo capítulo definimos o conceito de emprego e de trabalho, delimitando dessa maneira, por um lado, sua abrangência e sua relevância e, por outro, enriquecendo o significado daquilo que denominamos trabalho. Isso nos permite, agora, avançar ainda outro aspecto: o trabalho-emprego pode, sim, acabar. Seu fim pode ser proclamado e mesmo reivindicado. Mas, notemos bem, o trabalho cujo fim está próximo é o trabalho-emprego. Ou ainda dito com outras palavras: “o trabalho cujo fim é evidenciado não é o trabalho no sentido antropológico, mas esta atividade nascida com o capitalismo industrial, ou antes imposta à força[261] pelo desenvolvimento capitalista como parte destacável do corpo, mercadoria quantificável”[262].
Uma realidade visível a olhos vistos se dilata em todos os lados: “Tornado precário, flexível, intermitente, com duração, horários e salários variáveis, o emprego deixa de integrar num coletivo, deixa de estruturar o tempo cotidiano, semanal, anual e as idades da vida, deixa de ser a base sobre a qual cada um pode construir seu projeto de vida”[263].
Por conta dessa concepção estrita de trabalho podemos mesmo reivindicar a perda da centralidade do trabalho[264]. Para Gorz isso é algo necessário.
É necessário que o ‘trabalho’ perca sua centralidade na consciência, no pensamento, na imaginação de todos: é preciso aprender a ter sobre ele um olhar diferente: não mais pensá-lo como isso que se tem ou não se tem; mas como isso que nós fazemos. É preciso ousar querer nos reapropriar do trabalho.[265]
Por conta do declínio em quantidade, mas também em qualidade do trabalho,
a maioria das pessoas não pode identificar-se com seu trabalho porque a economia não requer trabalho pago suficiente para fornecer empregos estáveis em período integral para todos […] Paralelamente à impossibilidade efetiva de identificar-se com um emprego, surge uma relutância crescente em identificar-se com um trabalho que não favoreça o desenvolvimento da personalidade e a autonomia.[266]
A atração pelo trabalho-emprego repousa em grande parte na relação que guarda com a fonte de recursos necessários para a sobrevivência.
Mas, também subjetivamente parece que o trabalho está perdendo espaço na vida e na consciência das pessoas. Outras esferas da vida passam a ser mais importantes e valorosas, fazendo com que o trabalho seja descentrado. Nesse sentido, afirma Offe,
o que é paradoxal é que, ao mesmo tempo em que uma parcela sempre crescente da população participa do trabalho assalariado dependente, há um declínio no grau em que o trabalho assalariado, digamos, ‘participa’ na vida dos indivíduos envolvendo-os e ajustando-os de diferentes maneiras.[267]
A ética do trabalho, fundamental para o surgimento e a evolução da sociedade do trabalho, parece estar se encaminhando para a sua crise. E isso por vários motivos:
O trabalho exclui a atuação moral. O trabalho estaria se enfraquecendo como “dever ético”, na medida em que já não permite mais que os homens possam atuar nele moralmente. O processo de racionalização do trabalho atualmente em curso parece excluir cada vez mais o chamado “fator humano” e as potencialidades de cada trabalhador[268].
A vida não está mais no trabalho. Boa parte dos trabalhadores já não pauta mais a sua vida pelo trabalho, pois a “vida” está em outro lugar, fora do trabalho, nas relações familiares, de proximidade. “A satisfação com atividades que não são de trabalho contribui mais do que qualquer outro fator para a satisfação na vida”[269]. Gorz faz referência a diversas pesquisas realizadas na Europa e que apontam para um crescente divórcio entre trabalho-emprego e vida. O emprego não dá conta dos desejos reais que as pessoas têm. A não identificação com o trabalho que têm agiliza a desafeição ao trabalho[270].
Precarização do trabalho e desemprego. Quanto mais precário o trabalho mais ele contribui para que não mais seja visto como fator de realização ou de desenvolvimento das potencialidades. Pelo contrário, as condições precárias do trabalho impedem uma identificação com ele. O desemprego de longa duração ou freqüentemente intermitente não é capaz de manter uma afeição pelo trabalho. Offe cita um estudo no qual se faz basicamente a seguinte afirmação: quanto mais tempo as pessoas passam fora do emprego, mais percebem que o trabalho não é mais um foco suficiente para organizar a vida[271].
Estas evidências nos levam à afirmação de que “o trabalho não é apenas objetivamente amorfo, mas também está se tornando subjetivamente periférico”[272].
Não bastasse isso, o capitalismo acaba por colocar em crise não apenas o trabalho, mas também diversas noções relacionadas a ele e seu gerenciamento. A emergência do trabalho imaterial conduz a caminhos ainda mal vistos e afeta o próprio capitalismo, na medida em que categorias como “valor”, “trabalho”, “propriedade”, “riqueza” e “capital” são categorias em profunda transformação. Mas, aprofundar isso seria outro desafio, que foge dos limites deste trabalho.
Notas
[261] Sabemos das muitas resistências históricas oferecidas por parte dos trabalhadores para que a chamada “sociedade salarial” se tornasse hegemônica. Cf. CASTEL, 1998; MÉDA, 1995; MARGLIN, Stephen. Origem e funções do parcelamento das tarefas. Para que servem os patrões? In: GORZ, André (Org.). Crítica da divisão do trabalho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 37-77. Este texto, a nosso ver, foi importante para a virada no pensamento de Gorz, pois ele contribuiu para a compreensão da impossível apropriação coletiva. Cf. também _____. 1988, p. 34-36; 62-63. Gorz ocupa-se e chama a atenção para os grupos atuais de resistência à racionalidade econômica do trabalho: a geração X, os programadores de softwares livres e trabalhadores da “cultura da nanotecnologia”. Cf. _____. 1997, p. 101-107; _____. 2003c, 87-95.
[262] GOLLAIN, 2000, p. 112.
[263] GORZ, 1997, p. 98.
[264] Cf. GOLLAIN, op. cit., p. 120.
[265] GORZ, 1997, p. 11-12.
[266] GORZ. O declínio da relevância do trabalho e a ascensão de valores pós-econômicos. O socialismo do futuro, Salvador, n. 6, 1993c, p. 29, col. 1.
[267] OFFE, 1995, p. 182.
[268] Cf. ibid., p. 183-184.
[269] OF
FE, 1995, p. 188.
[270] Cf. GORZ, 1997, p. 101-107.
[271] Cf. OFFE, op. cit., p. 187, nota 23.
[272] Ibid., p. 194.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 2.8 O fim do trabalho e a sua não centralidade. Revista Vinculando. https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/fim_do_trabalho_centralidade.html
Deja un comentario