Gorz parte da constatação de que historicamente o trabalho nem sempre foi aquilo que ele é hoje. O que nós nos acostumamos a chamar “‘trabalho’ é uma invenção da modernidade. A forma sob a qual o conhecemos, praticamos e o situamos no centro da vida individual e social, foi inventada, e em seguida generalizada com o industrialismo”[73]. A compreensão que dele temos e o lugar que lhe damos, são novos. Ele ocupou outro lugar em outras sociedades[74].
No entanto, para uma visão mais ampla e menos asfixiante da noção de trabalho um olhar de longo prazo pode ser útil. Gorz olha, particularmente, para a realidade e o significado desta realidade que denominamos trabalho entre os gregos.
Os gregos faziam uma diferenciação mais aguda entre as atividades que constituíam a vita activa. Eles distinguiam o labor, o trabalho e a ação. O labor diz respeito à luta pela sobrevivência física do corpo. É realizado em vista da manutenção da vida e da sobrevivência da espécie humana. O labor está associado ao processo biológico do corpo. Há uma estreita relação entre produção e consumo. Tudo o que é produzido pelo labor é destinado ao consumo imediato, motivo pelo qual não deixa nada atrás de si[75].
O labor reúne estas características: é menosprezado, não glorificado, pertence ao reino das necessidades, é realizado na esfera doméstica ou privada e distingue-se pela sua transitoriedade. Está no degrau mais baixo da hierarquia de valores do ideal grego. Enfim, é marcado pela eterna circularidade entre produção e consumo.
Um segundo grupo de atividades é aquele denominado de trabalho[76].
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita a vida de cada indivíduo, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.[77]
O homo faber, em contraposição ao “animal laborans”, que requer o organismo humano por inteiro, caracteriza-se pelo uso das mãos. Com elas o homem fabrica a infinita variedade de coisas que o rodeiam e passam a constituir a sua mundanidade[78]. O homo faber é dependente das suas mãos; elas são o seu instrumento primordial[79]. Neste sentido, o homem já não mais labora, mas obra.
Se o labor combina necessidade e futilidade, o trabalho combina permanência e liberdade. O trabalho, também chamado de poièsis, não está mais a serviço das necessidades e dos constrangimentos materiais da subsistência. Por esse motivo, ele pode prescindir deste nível elementar e tornar-se criação, inovação, expressão, realização de si.
A terceira atividade fundamental da vita activa é a ação ou a praxis. “A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”[80].
Quatro são as características básicas que distinguem a ação, tanto do labor como do trabalho: a pluralidade, a não mediação material, o fato de ser exercida na esfera pública e a liberdade. “No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares”[81]. A singularidade própria da ação aparece na sua intransferibilidade. É possível que alguém faça outros trabalharem no seu lugar e assim lhe providenciam a sobrevivência, mas não é possível que abdique do discurso e da ação, uma vez que “trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano”[82]. Não há vida humana sem ação.
Ao contrário do labor e do trabalho, a ação não tem mediação material. A práxis é exercida diretamente entre as pessoas. A ação e o discurso são capacidades humanas imprescindíveis. “Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares […]”[83]. Cada ser humano se revela plenamente aos outros naquilo que é, comunicando-se. É no discurso e na ação que ele se mostra aos outros na sua individualidade.
Por essas razões, o lugar próprio da ação ou da práxis é a esfera pública, não a vida privada. A polis grega é o lugar por excelência onde se constrói a comunidade pelo agir e pelo falar, mas também o lugar da aparência.[84]
A ação produz uma realidade distinta da do labor e do trabalho; o “produto” mais imediato da ação é a realidade do próprio eu, da própria identidade ou a realidade do mundo circundante. A práxis não produz objetos, mas acima de tudo reflexões, ensinamentos, relações. Refere-se à produção de sentido, à produção do humano nas pessoas e elas entre si. Por isso a insistência de que “só a ação é prerrogativa exclusiva do homem”[85].
Mas, tal só pode ser alcançado num espaço em que predomina a liberdade. É evidente que neste estágio o suposto fundamental é que as necessidades já tenham sido atendidas. A polis não nega a esfera privada, o espaço da família, da “economia”, da necessidade, mas a transcende. A vida doméstica só existe em função da vida na polis. “A esfera da polis era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis”[86]. Por isso, cada cidadão “se esforçava para reduzir ao mínimo o peso das necessidades da vida”[87], para poder dispor de mais tempo para a polis.
Como se vê, os gregos estabeleceram uma hierarquização das atividades constitutivas da vita activa. Nessa hierarquia a práxis ocupava o lugar mais alto, ao passo que o labor ocupava o degrau mais baixo[88]. Destacar esse aspecto é importante para perceber com mais clareza a mutação de valores que a sociedade industrial irá introduzir na sua percepção do mundo e das atividades humanas.
O “trabalho” entre os gregos não gozava de nenhuma simpatia. Pelo contrário, era visto como algo degradante, como um castigo, como algo que denegria a imagem de ser humano e de cidadão reinante entre os gregos. Dessa maneira, o trabalho não podia ser o fundamento do laço social. As ligações sociais estavam antes fundadas em outros lugares, que não a “economia”. Os costumes, as leis, a magia e a religião, eram suportes fundamentais para a coesão e a integração social. Eles constituíam um todo, no qual a organização econômic
a constituía apenas um elem
ento[89]. A rigor, como enfatiza Gorz, o labor não pode jamais ser o fundamento da coesão social, pois não é isso que ele realiza: “este trabalho necessário para a subsistência não pode jamais converter-se num fator de integração social. Era, antes, um princípio de exclusão: aqueles que o realizavam eram tidos como inferiores em todas as sociedades pré-modernas”[90]. Mais do que incluir, ele exclui; mais do que conduzir à igualdade entre todas as pessoas, ele introduz irremediavelmente a submissão e a heteronomia.
Gorz relê os gregos especialmente a partir das noções de labor e trabalho. Mas, vai dizer que aquilo que nós chamamos de “trabalho” não é rigorosamente nem labor nem trabalho, mas é uma simbiose das duas atividades. Para ele, esse novo trabalho tem as seguintes características:
a) É realizado na esfera pública[91]. Ele sai do esconderijo da esfera privada a que era submetido no mundo antigo e passa a ser realizado no coração do espaço público, à vista de todos. Havia, no mundo antigo, uma certa simetria entre a esfera privada, o mundo da família e a economia. “A maior parte da economia é uma atividade privada que não se desenvolve à luz do dia, na praça pública, mas no seio do domínio familiar[92]”. O “novo” trabalho precisa ser “demandado, definido, reconhecido como útil pelos outros”[93].
b) É um esforço humano remunerado. O trabalho reconhecido como útil pela sociedade é aquele que é remunerado. Esta é a principal característica do trabalho moderno. “Pelo trabalho remunerado (e mais particularmente pelo trabalho assalariado) é que pertencemos à esfera pública, conseguimos uma existência e uma identidade sociais (ou seja, uma “profissão”), estamos inseridos numa rede de relações e intercâmbios na qual nos medimos com os outros e nos são conferidos direitos sobre eles em troca de nossos deveres para com os mesmos”[94]. A transformação do trabalho assalariado no principal elemento de socialização foi responsável não só para que a sociedade industrial se distinguisse de todas as sociedades precedentes, mas para que se autodenominasse como “sociedade de trabalhadores”[95].
c) É fator de exclusão social. É fazendo esta volta ao passado, que Gorz alerta para o fato de que o trabalho necessário para a sobrevivência nunca pôde converter-se num fator de integração social. Ao contrário, sempre funcionou como princípio de exclusão social. E isso porque aqueles que o realizavam sempre eram tidos como inferiores (escravos, mulheres…), pois pertenciam ao reino da necessidade[96]. A satisfação das necessidades excluía da cidadania, pois impedia a participação na polis. Fazendo a distinção entre labor e trabalho, Gorz é capaz de desvendar a incapacidade de libertação no trabalho, uma vez que ele sempre se realiza em condições de poder extremamente desiguais.
A perspectiva de inclusão social que o trabalho moderno arroga para si esconde uma outra mutação na natureza do trabalho: de algo desprezível, para os antigos, transforma-se numa virtude, num valor[97]. Por não ser um valor para os antigos a própria idéia de ‘trabalhador’ era inconcebível: “condenado à servidão e à reclusão na domesticidade, o ‘trabalho’, longe de conferir uma ‘identidade social’, definia a existência privada e excluía do domínio público à quelas e à queles que estavam submetidos a ele”[98].
Notas
[73] GORZ, André. Métamorphoses du travail: quête du sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988, p. 25.
[74] Para ver como o trabalho era compreendido por outras sociedades, conferir: MÉDA, 1995, p. 30-59; POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 62-75.
[75] Cf., ibid., p. 98.
[76] Vale a pena recordar que entre os gregos não havia uma noção unívoca que englobasse os diferentes ofícios e ‘produtores’. Cf. MÉDA, 1995, p. 39.
[77] ARENDT, 1989, p. 15.
[78] Ibid., p. 149.
[79] Ibid., p. 157.
[80] Ibid., p. 15.
[81] ARENDT, 1989, p. 189.
[82] ARENDT, loc. cit.
[83] Ibid., p. 192.
[84] Ibid., p. 211.
[85] ARENDT, 1989, p. 31.
[86] Ibid., p. 40.
[87] GORZ, 1988, p. 28.
[88] Cf. ARENDT, 1989, p. 25-26; MÉDA, 1995, p. 46.
[89] Cf. POLANYI, op. cit., p. 75.
[90] GORZ, 1988, p. 26.
[91] Cf. GORZ, 1988, p. 25, 27-28.
[92] Ibid., p. 27.
[93] Ibid., p. 25.
[94] GORZ, 1988, p. 25-26.
[95] Cf., ibid., p. 26.
[96] GORZ, loc. cit.
[97] Cf. MÉDA, 1995; CHAUI, Marilena. Introdução. LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. 2. ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 1999. p. 9-56.
[98] GORZ, 1988, p. 28.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 2.1 A invenção moderna do trabalho. Revista Vinculando. https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/invencao_moderna_do_trabalho.html
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