A maior distância que Gorz toma do tempo moderno permite-lhe lançar novas luzes sobre a problemática conceitual do trabalho. O contato com a experiência grega aviva-lhe uma riqueza escondida pela moderna noção de trabalho. Assim, Gorz passa a pleitear uma outra noção de trabalho, como veremos agora.
Uma entrevista de Gorz publicada em 1998[250], portanto, depois de “Misères du présent. Richesse du possible”, é bastante ilustrativa a respeito dos conceitos usados por ele. Usa três conceitos para se referir ao trabalho: labor ou ponos, isto é, aquelas atividades que é preciso realizar dia após dia para garantir a sobrevivência. Ele relaciona ponos e corvéia. A segunda categoria é a poièsis, isto é, o trabalho de criação, invenção, expressão, realização de si. A práxis ou o agir é a terceira categoria, com explícita referência a Hannah Arendt. Esta noção compreende a reflexão, o debate político e filosófico, o ensino, boa parte daquilo que hoje chamamos de “relacional”, e a “produção de si”, o Eros. Admite que há cruzamentos e interpenetrações entre essas dimensões da atividade humana, mas que se distinguem por seu sentido e sua intencionalidade, muito mais do que por seu conteúdo.
O que acima definimos como emprego, está, portanto, mais na linha do labor ou do ponos. Para Gorz está claro que há outras dimensões da existência humana (poièsis e práxis) e que elas foram, no capitalismo, subjugadas à primeira. O trabalho abstrato, que pode ser comprado e vendido e que serve para fins determinados por outros, não é toda a realidade. Aliás, assentado na máxima grega e posteriormente retomada por Marx, postula que a verdadeira vida começa quando as determinações do reino da necessidade já foram atendidas. O reino da liberdade só encontra espaço para além do reino da necessidade. Gorz cita o texto de Marx em que este fala desses dois reinos: “O reino da liberdade ‘só começa no outro lado de suas fronteiras [do reino da necessidade]’ e se confunde com ‘o desenvolvimento da atividade considerada fim em si mesma’ (‘der Kraftentfaltung die sich als Selbstzweck gilt’)”[251].
Gorz distingue entre atividades heterônomas e autônomas. As atividades autônomas, contrariamente à s heterônomas, não têm por finalidade primeira a troca no mercado, mas são aquelas autodeterminadas por cada um e em vista dos seus interesses. Ou como ele próprio define:
Eu chamo autônomas essas atividades que são para si mesmas sua própria finalidade. Valem por e para si mesmas não porque não tenham outro fim além da satisfação ou do prazer que procuram, mas porque a realização do fim, tanto como a ação que o realiza, são fontes de satisfação: o fim se reflete nos meios e inversamente […].[252]
O trabalho acaba por recobrir um campo mais vasto de atividades que o emprego. Muitas atividades socialmente não reconhecidas como úteis ficam à margem, em segundo plano, assim como tantos interesses e motivações pessoais. Limitar o conceito de trabalho permite reconhecer, valorizar e estimular uma série de atividades como socialmente importantes, ainda que não remuneradas.
Atividades artísticas, políticas, científicas, ecosóficas, esportivas, artesanais, relacionais; trabalhos de autoprodução, de reparação, de restauração do patrimônio natural e cultural, de disposição do marco da vida, da economia de energia; ‘oficinas de crianças’, ‘oficinas de saúde’, redes de intercâmbios de serviços, de ajuda mútua e de assistência mútua, etc.,[253]
seriam possíveis de se proliferarem muito mais. Uma das conseqüências mais importantes seria que estas e tantas outras atividades resultariam na produção de novas socialidades, de novos modos de vida e de cooperação. Subtraídas aos dispositivos de poder do capital e do Estado[254], seriam capazes de estimular redes de relações com potencial para densificar o tecido social esgarçado[255]. Novos laços sociais poderiam ser construídos. Evidentemente que o político e o cultural jogariam outro papel, não o de subordinados ao econômico.
Essa maneira de conceber o trabalho faz deslocar o foco das atenções para o interior da sociedade e de suas necessidades (nem sempre só econômicas) e não prendê-lo à fábrica, à empresa e suas necessidades (sempre econômicas).
Olhando a partir desta perspectiva mais ampla, o que falta não é trabalho, mas um determinado tipo de trabalho que passamos a denominar de emprego. Este sim está em crise. Mas, trabalho há demais. O verdadeiro trabalho (poièsis), aquele no sentido antropológico e filosófico, é o trabalho de criação, de invenção, de expressão, de realização de si. É dele que a sociedade sente falta.
Há um aspecto em Gorz que merece uma atenção especial por conta das conseqüências que poderá ter. Ele usa o termo “relações” no contexto dos círculos de cooperação: seu valor social não reside na criação de “utilidades” com vistas à troca, mas no “estabelecimento de relações de reciprocidade estáveis […].” [256]. Por outro lado, se a nossa hipótese acerca da simbiose que Gorz realiza entre poièsis e práxis estiver acertada, podemos concluir que o trabalho é criador de relações sociais e não apenas produtor de bens e serviços, cuja concepção passou a prevalecer com a imposição da forma emprego. O trabalho é mediador social direto, não havendo necessidade de que as pessoas se relacionem umas com as outras por meio de seus objetos. Assim, este tipo de atividade estaria sendo elevado novamente ao topo da hierarquia, seguindo também o pensamento de Arendt. Essa visão encontra também apoio em outras culturas como mostram estudos antropológicos e etnográficos aos quais, por exemplo, Polanyi faz referência. Aqui há, certamente, um vasto campo a ser explorado.
Gorz, na segunda metade do capítulo sobre os limites da racionalidade econômica, desenvolve detalhadamente os subgrupos das atividades não-mercantis, Ã s quais vale a pena retornar. Como já vimos, ele subdivide essas atividades em atividades para si e autônomas.
Parte do problema de que hoje as tarefas domésticas são reduzidas em boa parte ao ponos. Os serviços domésticos são externalizados em vista da criação de empregos. Por trás está a ideologia da geração de empregos a todo custo, não importando sua qualidade nem sua real necessidade. Parte do princípio de que o desenvolvimento dos serviços pessoais só é possível num contexto de desigualdade social crescente, em que uma parcela da população abocanha as atividades bem remuneradas e obriga a outra a trabalhar a serviço dela. O serviço de doméstica acaba sobrando para uma massa econômica e socialmente marginalizada. Perpetua-se, assim, na sociedade brasileira, por exemplo, a tradição escravocrata[257].
A profissionalização dos serviços domésticos mostra-se uma nova escravidão. Ela introduz uma divisão social que reforça a desigualdade social. A solução não é, segundo Gorz, seguir pelo caminho da ampliação das atividades que podem ser remuneradas[258]. Antes, a solução está em que todo mundo trabalhe menos. Assim, todos poderiam assumir também os afazeres domésticos.
O caminho não passa pelo assalari
amento do trabalho doméstic
o. A luta deve ser pela emancipação da mulher no seio das relações da esfera doméstica. Em outras palavras, não passa pela consagração da esfera doméstica à mulher assegurada pelo assalariamento, mas pela repartição voluntária das tarefas tanto da esfera privada como da esfera pública a fim de que pertençam igualmente a uma e a outra.
O trabalho para si é “fundamentalmente aquele que temos que fazer para tomar possessão de nós mesmos e dessa organização de objetos que, prolongando-nos e refletindo-nos a nós mesmos como existência corporal, constitui nosso nicho no seio do mundo sensível: nossa esfera privada”[259]. Trabalhar para si não significa fazer as coisas só para si. O trabalho para si pode também ser um trabalho para nós. A esfera privada não se limita ao espaço íntimo de cada um, mas refere-se também à casa, à vizinhança, à praça, à rua, ao bairro.
As atividades autônomas radicalizam ainda mais a independência em relação à lógica da racionalidade econômica, uma vez que não devem ser necessidade nem ter por finalidade o intercâmbio. Ou seja, elas são sem significação econômica.
O propósito central de Gorz, como vimos, consiste em delimitar, por um lado, o conceito de trabalho no sentido de emprego e, por outro, liberar uma vasta gama de atividades não sujeitas à lógica da racionalidade econômica. Procura mostrar que o verdadeiro trabalho não está no “trabalho”, mas fora dele[260]. E que a verdadeira vida não está no “trabalho”, mas fora dele.
Notas
[250] Cf. GORZ. “Oser l’exode” de la societé du travail. Vers la production de soi, entretien avec André Gorz. Les périphériques vous parlent n. 10, 1998. Disponível em: <http://www.glogenet.org/periph.html> Acesso em: 10 maio 2003a.
[251] GORZ, 1988, p. 206.
[252] GORZ, loc. cit.
[253] Id., 1997, p. 161-162.
[254] Cf. GORZ, 1997, p. 132-133.
[255] Cf. Ibid., p. 163.
[256] Ibid., p. 174.
[257] Segundo José Carlos Ferreira, diretor-adjunto da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o elevado índice de empregadas domésticas no Brasil (21% da PEA feminina – maior que todos os outros países da América Latina) se deve a dois fatores: o aumento nas taxas de desemprego e uma tradição escravocrata da sociedade brasileira. Cf. DANTAS, I., Doméstica é 2ª maior ocupação da mulher. Folha de S.Paulo, 25 maio 2003.
[258] Este é, por exemplo, o caminho entreaberto pela Dominique Schnapper. “A revolução tecnológica permite ter uma produção superior com menos trabalhadores, e isto deve forçar-nos a pensar nas maneiras de reconhecer, económicamente e socialmente, a actividade e a utilidade social de muita gente que já não pertence a este sector da produção”. SCHNAPPER, D. Contra o fim do trabalho. Lisboa: Terramar, 1998, p. 38.
[259] GORZ, 1988, p. 197.
[260] Cf. GORZ, 1997, p. 13.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 2.7 O trabalho: isso que se faz. Revista Vinculando. https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/trabalho_faz.html
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