A noção de rede é peculiar à teoria da complexidade, guardando traços advenientes da cibernética, da ecologia e de outras elaborações sistêmicas em diferentes áreas. A noção de rede coloca a ênfase nas relações entre diversidades que se integram, nos fluxos de elementos que circulam nessas relações, nos laços que potencializam a sinergia coletiva, no movimento de autopoiese em que cada elemento concorre para a reprodução de cada outro, na potencialidade de transformação de cada parte pela sua relação com as demais e na transformação do conjunto pelos fluxos que circulam através de toda a rede. Assim a consistência de cada membro depende de como ele se integra na rede, dos fluxos de que participa, de como acolhe e colabora com os demais.
A noção de Rede de Colaboração Solidária, enquanto categoria analítica, resulta da reflexão sobre práticas de atores sociais contemporâneos, compreendidas desde a teoria da complexidade e da filosofia da libertação. Enquanto categoria estratégica é elemento central da chamada revolução das redes, na qual ações de caráter econômico, político e cultural se realimentam subvertendo padrões e processos hegemônicos mantenedores do capitalismo avançando para a construção de uma globalização solidária.
Nesta segunda acepção, considerando-se o seu aspecto econômico, trata-se de uma estratégia para conectar empreendimentos solidários de produção, comercialização, financiamento, consumidores e outras organizações populares (associações, sindicatos, ONGs, etc) em um movimento de realimentação e crescimento conjunto, auto-sustentável, antagônico ao capitalismo. Quatro são os critérios básicos de participação nessas redes: a) que nos empreendimentos não haja qualquer tipo de exploração do trabalho, opressão política ou dominação cultural; b) busque-se preservar o equilíbrio ecológico dos ecossistemas (respeitando-se todavia a transição de empreendimentos que ainda não sejam ecologicamente sustentáveis); c) compartilhar significativas parcelas do excedente para a expansão da própria rede; d) autodeterminação dos fins e autogestão dos meios, em espírito de cooperação e colaboração.
O objetivo básico dessas redes é remontar de maneira solidária e ecológica as cadeias produtivas: a) produzindo nas redes tudo o que elas ainda consomem do mercado capitalista: produtos finais, insumos, serviços, etc; b) corrigindo fluxos de valores, evitando realimentar a produção capitalista, o que ocorre quando empreendimentos solidários compram bens e serviços de empreendimentos capitalistas; c) gerando novos postos de trabalho e distribuindo renda, com a organização de novos empreendimentos econômicos para satisfazer as demandas das próprias redes; d) garantindo as condições econômicas para o exercício das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. O reinvestimento coletivo dos excedentes possibilita reduzir progressivamente a jornada de trabalho de todos, elevar o tempo livre para o bem viver e aprimorar o padrão de consumo de cada pessoa.
Aviabilidade desta alternativa pós-capitalista depende da difusão do consumo solidário, de reinvestimentos coletivos de excedentes e da colaboração solidária entre todos. Em uma rede as organizações de consumo, comércio, produção e serviço, mantêm-se em permanente conexão em fluxos de materiais (produtos, insumos, etc), de informação e de valor, que circulam através da rede.
As propriedades básicas dessas rede são autopoiese, intensividade, extensividade, diversidade, integralidade, realimentação, fluxo de valor, fluxo de informação, fluxo de matérias e agregação. A gestão de uma rede solidária deve ser necessariamente democrática, pois a participação dos membros é inteiramente livre, respeitando-se os contratos firmados entre os membros. Entre suas características estão: descentralização, gestão participativa, coordenação e regionalização, que visam assegurar a autodeterminação e autogestão de cada organização e da rede como um todo
Com efeito, quando redes locais deste tipo são organizadas, elas operam no sentido de atender demandas imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem-viver, ao mesmo tempo em que combatem as estruturas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão, e começam a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a solidariedade está no cerne da vida. As Redes de Colaboração Solidária portanto: a) permitem aglutinar diversos atores sociais em um movimento orgânico com forte potencial transformador; b) atendem demandas imediatas desses atores por emprego de sua força de trabalho e por satisfação de suas demandas por consumo, pela afirmação de sua singularidade negra, feminina, etc; c) negam estruturas capitalistas de exploração do trabalho, de expropriação no consumo e de dominação política e cultural, e d) passam a implementar uma nova forma pós-capitalista de produzir e consumir, de organizar a vida coletiva afirmando o direito à diferença e à singularidade de cada pessoa, promovendo solidariamente as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.
Nas últimas décadas surgiram em todo o mundo, nos campos da economia, política e cultura, inúmeras redes e organizações na esfera da sociedade civil lutando pela promoção das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, constituindo-se embrionariamente em um setor público não-estatal. Redes e organizações feministas, ecológicas, movimentos na área da educação, saúde, moradia e muitos outros na área da economia solidária e pela ética na política – para citar apenas alguns – vão se multiplicando, fazendo surgir uma nova esfera de contrato social. O avanço de uma nova consciência e de novas práticas sobre as relações de gênero, sobre o equilíbrio dos ecossistemas e sobre a economia solidária, por exemplo, não emerge nas esferas do mercado ou do Estado. O consenso sobre essas novas práticas tem sido construído no interior de redes em que pessoas e organizações de diversas partes do mundo colaboram ativamente entre si, propondo transformações do mercado e do Estado, das diversas relações sociais e culturais a partir de uma defesa intransigente da necessidade de garantir-se universalmente as condições requeridas para o ético exercício das liberdades públicas e privadas.
A progressiva e complexa integração dessas diversas redes, colaborando solidariamente entre si, colocou no horizonte das possibilidades concretas a realização planetária de uma nova revolução, capaz de subverter a lógica capitalista de concentração de riquezas e de exclusão social e diversas formas de dominação nos campos da política, da economia e da cultura.
Iniciando-se nos campos da cultura e da política, essas redes avançaram progressivamente para o campo da economia, afirmando a necessidade de uma democracia total, que somente se realiza introduzindo-se e implementando-se mecanismos de autogestão das sociedades em todas as esferas que a compõem. Não se trata, portanto, apenas do controle político da sociedade sobre o Estado, mas igualmente do controle democrático da sociedade sobre a economia, sobre a geração e fluxos de informação, sobre tudo aquilo que afeta a vida de todos e de cada um e que possa ser objeto de decisões humanas.
Gênese e Desenvolvimento Histórico
Nas últimas décadas tivemos o surgimento e/ou propagação de inúmeras práticas de colaboração solidária no campo da economia, entre as quais elencam-se: renovação da Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Fair Trade ou Comércio Équo e Solidário, Organizações Solidárias de Marca e Etiquetagem, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Sistemas Locais de Intercâmbio com Moedas Sociais, Redes de Trocas, Economia de Comunhão, Sistemas de Micro-Crédito, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Grupos de Compras Solidárias, Movimentos de Boicote, difusão de Softwares Livres, entre outras práticas de economia solidária. Significativas parcelas de organizações que se inscrevem nessas práticas e que, em seu conjunto, cobrem os diversos segmentos das cadeias produtivas (consumo, comércio, serviço, produção e crédito) começaram a despertar recentemente para ações conjuntas em rede, ao passo que outras já atuam dessa forma, há mais de três décadas. O crescimento mundial dessas redes, indica a ampliação de novos campos de possibilidade para ações solidárias estrategicamente articuladas, com o objetivo de promover as liberdades públicas e privadas, como as que têm sido debatidos nos fóruns sociais mundiais.
Notas
* Euclides André Mance é filósofo e escritor. Colaborou com o Governo Lula no período de 2003 a 2006, como consultor em projetos da UNESCO e da FAO no Programa Fome Zero. Entre seus livros estão Fome Zero e Economia Solidária (2004) e A Revolução das Redes (1999). O presente texto é um extrato do verbete "Redes de Colaboração Solidária"?, publicado em: Antonio CATTANI (org.) La Outra Economia, Buenos Aires, Altamira, 2004, p.353-362
Artículo publicado originalmente en la Revista CHRISTUS, Marzo-abril 2007, No.759 y reproducido con permiso de Mario Monroy
Datos para citar este artículo:
Euclides André Mance. (2007). Redes Solidárias de Colaboração. Revista Vinculando. https://vinculando.org/economia_solidaria/redes_solidarias_de_colaboracao.html
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