Vimos acima que Gorz opera uma guinada no seu pensamento teórico a partir da segunda metade da década de 1970, consagrada em 1980 com a publicação de Adeus ao proletariado. Nesta segunda fase, Gorz dá especial atenção à redefinição da noção de trabalho. Na primeira fase, esta preocupação conceitual está fora dos seus propósitos[220].
A concepção de trabalho que vai emergindo nesta segunda fase é tão importante que não pode ser dissociada do conjunto do seu pensamento nesta fase. É mesmo um vetor central para se pensar uma nova sociedade. Não há como pensar novas bases para uma sociedade sem levar em conta o papel que o trabalho irá ocupar nela. A importância da reflexão de Gorz sobre o trabalho repousa exatamente nesta íntima relação entre a concepção de trabalho e de sociedade que se pretende. Gorz chega a definir, baseado em Polanyi, o socialismo em base a essa nova realidade que o trabalho terá nele: a essência do socialismo consistirá na “subordinação das atividades econômicas à s finalidades e valores societais”[221]. Gorz insere-se, portanto, nesta segunda fase, na linha de pensamento que propugna a subordinação da racionalidade econômica e da realidade econômica a fins sociais. E isso diz respeito diretamente ao trabalho.
A distinção entre “trabalho” e “emprego” está presente em “Adeus ao proletariado”. No artigo “Nove teses para uma esquerda futura”, acrescentado como “Prefácio” à edição brasileira de “Adeus ao proletariado”, Gorz expõe de maneira fenomenal os grandes temas que o acompanharão ao longo desta segunda fase, ao menos até o presente momento: trabalho, desemprego, heteronomia, a impossível apropriação coletiva, atividades autônomas, mudança tecnológica, desvinculação entre direito ao trabalho e direito à renda, bem como a redução da jornada de trabalho, uma das grandes propostas que irá defender. Consegue já há mais de 20 anos chamar a atenção para temas que hoje são temas em voga na agenda das discussões políticas das sociedades. Ousaria mesmo dizer que este artigo é uma espécie de manifesto programático de Gorz desta segunda fase.
Entendemos por emprego a aplicação da racionalidade econômica ao trabalho. Para Gorz a racionalidade econômica é co-irmã da razão cognitiva instrumental[222]. A racionalidade econômica passa a existir em conexão com o cálculo contábil. O triunfo desse tipo de racionalidade passa a ocorrer quando o cálculo se torna o critério supremo de avaliação. Determinada atividade vale a pena ser executada ou não em vista do cálculo das vantagens e desvantagens, sem que tenha em conta as minhas preferências[223]. E o cálculo é sempre o cálculo matemático, frio, imparcial, lógico. Todos os outros critérios, sociais ou pessoais, são submetidos à contabilidade. Foi a supremacia desta lógica que tornou possível, em primeiro lugar, que se pudesse organizar esta civilização fria, cujas frias relações, funcionais, calculadas, formalizadas, fazem dos indivíduos vivos estranhos no mundo reificado que, no entanto, é seu produto, e na qual uma formidável inventividade técnica vai de par com a deterioração da arte de viver, da comunicatividade, da espontaneidade.[224]
Portanto, sem esse cálculo não haveria racionalidade econômica.
Mas para que o trabalho seja racional, duas outras condições se fazem necessárias: primeiro, “o trabalho deve ter por fim o intercâmbio mercantil e não o autoconsumo”[225]. Como se vê, há uma incompatibilidade por natureza entre a autonomia e a heteronomia em qualquer sistema regido pela racionalidade econômica. Cada indivíduo é incitado a abandonar aquelas atividades direcionadas para a satisfação das necessidades individuais. O que importa é que se produza mercadorias.
Segundo, a produção deve destinar-se “ao intercâmbio num mercado livre em que produtores sem nenhum vínculo entre si se encontram em concorrência frente a compradores com os quais não têm nenhum vínculo”[226]. É mediante esta maneira de organizar a atividade econômica que o capitalismo vai se reproduzindo. Cada qual é responsável pelo êxito de sua “mercadoria”, o trabalho.
Assim, reúnem-se as condições para que o trabalho seja o que é em nossas sociedades: emprego. E, portanto, a característica fundamental do emprego é ser “uma atividade desdobrada em vista do intercâmbio mercantil e tornada necessariamente objeto de um cálculo contábil de maneira que seja realizado o mais eficazmente possível”[227]. Já anteriormente, em “Métamorphoses du travail”, Gorz havia descrito como entende o trabalho enquanto emprego:
A característica essencial desse trabalho – esse que nós ‘temos’, ‘buscamos’, ‘oferecemos’ – é ser uma atividade que se desenvolve na esfera pública, uma atividade requerida, definida e reconhecida como útil pelos outros, que, por esse motivo, a retribuem. É pelo trabalho remunerado (e mais particularmente pelo trabalho assalariado) que pertencemos à esfera pública, adquirimos uma existência e uma identidade sociais (isto é, uma ‘profissão’), somos inseridos numa rede de relações e de intercâmbios na qual nos medimos com os outros e nos vemos conferidos direitos sobre eles em troca de nossos deveres para com eles. É porque o trabalho remunerado e determinado é – mesmo para aqueles e aquelas que o procuram, que se preparam para ele ou que dele são privados -de longe o fator mais importante da socialização, que a sociedade industrial se compreende como uma ‘sociedade de trabalhadores’, e, por isso, se distingue de todas as outras que a precederam.[228]
O emprego assume as características de mercadoria: é algo que se tem ou não se tem[229]; é algo que se pode vender e comprar no mercado[230]; é socialmente determinado, homologado, legalizado, legitimado, definido pelas competências ensinadas, certificadas e tarifadas[231]. O trabalho, entendido como emprego é, então,
uma atividade social, destinada a se inscrever no fluxo dos intercâmbios sociais na escala de toda a sociedade. Sua remuneração atesta esta inserção, mas ainda não é o essencial: o essencial é que o ‘trabalho’ preenche uma função socialmente identificada e normatizada na produção e na reprodução do todo social. E para preencher uma função socialmente identificável, ele mesmo deve ser identificável pelas competências socialmente definidas que coloca em funcionamento segundo procedimentos socialmente determinados. Deve, em outras palavras, ser um ‘ofício’, uma ‘profissão’, quer dizer, a colocação em prática de competências institucionalmente certificadas segundo procedimentos homologados.[232]
A sociedade do trabalho passou a identificar esta forma particular de trabalho, o emprego, com a forma genérica trabalho. E empregando de maneira indiferenciada a noção de “trabalho” passou a situar “no mesmo plano o trabalho do
operário da indústria e do
compositor de música ou do cientista”[233]. Por trás desta confusão conceitual esconde-se uma rica realidade de atividades que se faz necessário recuperar. O próprio Gorz reconhece que essa confusão está presente em Marx e em toda a modernidade[234]. E nisto ele está de acordo com Arendt. O moderno conceito de “trabalho” oculta, para Arendt, a antiga distinção entre labor, trabalho e ação. O que Marx chama de “trabalho” é, para Arendt, labor[235]. Ao identificar o trabalho com o labor, parece óbvio que a sociedade industrial atribua ao labor certas qualidades que somente o trabalho possui[236]. E assim “a produção moderna está assentada na recorrência de um processo produtivo que, sem começo e sem fim determinados, nada deixa atrás de si e se realiza através da capacidade que todo o homem possui como participante do ciclo de sobrevivência e de reprodução da espécie”[237].
Realizando uma inversão da hierarquia tradicional entre labor e trabalho – Gorz fala em simbiose – a realização da atividade do labor passa a ser feita na esfera pública, razão pela qual, na ótica de Arendt o labor atingiu a excelência na sociedade moderna[238]. O homem moderno é, assim, um homo laborans por excelência. O homo faber grego passou para segundo plano e com ele as suas qualidades.
A indistinção no conceito de trabalho tem por conseqüência uma ampliação do conceito de trabalho a tal ponto que todas as atividades humanas podem ser consideradas trabalho. O que efetivamente tem acontecido. Mas, como diz o filósofo Paul Ricoeur: “Uma noção que significa tudo não significa mais nada”[239].
Gollain chama a atenção para o fato de que uma concepção extensiva ou ampliada de trabalho não ajuda a perceber a radical novidade apresentada pela corrente historicista, mais particularmente, por André Gorz: a de que ela não ajuda a “apreciar as descontinuidades da história e da geografia das atividades humanas e a propor uma definição restritiva, a nosso modo de ver mais rigorosa, do conceito de trabalho assim como é apreendido no seu sentido moderno”[240], como o definimos anteriormente.
Por conta dessa confusão conceitual, e confrontados com o problema do desemprego, uma das saídas está em ampliar ainda mais o leque de atividades que podem ser remuneradas de alguma maneira. Os defensores dessa idéia trazem à tona uma série de atividades não mercantis, mas que poderiam ser incorporadas ao campo das atividades mercantis. E não seria difícil encontrar uma utilidade social para tantas atividades protegidas da lógica da racionalidade econômica. Essa questão, no entanto, pode ser alargada a ponto de se revelar absurda[241].
Gorz não concorda com a definição ampliada de trabalho apresentada pelos partidários da corrente essencialista. Para ele é preciso “reaprender a diferenciar a noção de trabalho a fim de evitar o contra-senso de remunerar as atividades sem fins mercantis e a submeter à lógica do rendimento os atos que só estão em conformidade com seu sentido quando o tempo neles consumido não for contabilizado”[242]. Ou seja, Gorz propõe a necessidade de postular a limitação da racionalidade econômica aplicada ao trabalho. Não basta simplesmente definir os critérios da racionalidade econômica, isto é, evidenciar que uma atividade, para ser considera “trabalho”, seja socialmente útil (como fizemos anteriormente); faz-se necessário também definir os critérios de sua aplicabilidade[243].
Gorz propõe quatro critérios necessários para definir uma atividade como submetida à racionalidade econômica ou não. Esses critérios são os seguintes: que crie a) valor de uso; b) com vistas a um intercâmbio mercantil (salário); c) na esfera pública; d) e que tenha o tempo como medida de rendimento[244]. Portanto, qualquer atividade para ser considerada emprego deve preencher estes quatro requisitos. Gorz chama a atenção para o fato de que, contra uma concepção muito difundida, não é o salário que define o trabalho no sentido econômico[245]. Os outros critérios também precisam ser preenchidos.
Gorz divide as atividades em dois grandes grupos: as atividades mercantis e as atividades não-mercantis. De saída ele exclui as atividades não-mercantis como ‘trabalho’. São outra coisa, mas não trabalho no sentido de emprego, pois não preenchem os critérios apontados acima. A remuneração pode estar presente neste grupo de atividades, mas não é prioritária. As atividades mercantis, por sua vez, são divididas em cinco subgrupos[246]: o trabalho no sentido econômico como emancipação; o trabalho do servidor; as funções, cuidados e assistência; a prostituição; a maternidade, função maternal, mães substitutas.
a) O trabalho no sentido econômico comoemancipação. Na análise que Gorz faz das atividades à luz dos quatro critérios acima indicados, apenas este grupo de atividades preenche todos eles. São atividades que criam valor de uso, são socialmente úteis, por isso remuneradas e cuja produtividade é medida em termos de quantidade de tempo.
b) O trabalho de serviçal. Aqui se situam todos os trabalhadores serviçais: domésticos, engraxates, servidores públicos. Preenchem todos os critérios, menos o de criarem valor de uso. Por isso não podem ser classificados de trabalho economicamente racional.
c) As funções, cuidados e assistência. Este subgrupo inclui os trabalhos de vigilância, controle, manutenção, bombeiro, fiscalização, saúde. São atividades que não se pode medir, nem maximizar seu rendimento. Não se pode medir a eficácia do médico, por exemplo, pelo número de pacientes que atende; nem o professor pelo número de aulas que deu. As exigências de controle de qualidade, qualidade total, podem ter conseqüências desastrosas quando transpostas da fábrica para um hospital, para um estabelecimento de ensino… O que significa produtividade em ambientes como esses? A aplicação da racionalidade econômica não se torna uma irracionalidade quando inserida num contexto mais amplo em que contam também as relações humanas, o afeto, o carinho, a atenção…?[247] Os custos indiretos (desemprego, violência social, exclusão) muitas vezes podem superar os custos diretos, em vista de cuja redução a racionalidade econômica é introduzida. Olhando dessa perspectiva, nem sempre a implantação de inovações tecnológicas sem mais é o caminho mais racional.
d) A prostituição. A prostituição e o trabalho de massagens carecem do terceiro critério, o de que são realizados na esfera pública. O trabalho do ou da massagista é protegido por um procedimento codificado do qual é sempre o dono e que funciona como barreira instransponível que protege o/a terapeuta de uma relação mais íntima. A relação com os pacientes, no caso da prostituta ou do terapeuta, é uma relação meramente profissional.
e) Maternidade, função materna e mães substitutas. Para Gorz, essas atividades não preenc
hem nenhum dos quatro critérios. O ponto de partida para a sua reflexão sobre essas atividades é a existência de um “subsídio público dado à s mães em nome da utilidade social e econômica da ‘função materna’”[248]. A função maternal é sempre uma relação de amor, uma relação pessoal, não podendo, por isso, ser considerada uma relação social. Mas, quando a sociedade brinda a mãe com um subsídio social, deve ter claro se este subsídio consagra o direito soberano da mulher a ser mãe e a criar seu filho com toda a independência ou se é atribuído à mulher em razão da função socialmente útil que ela cumpre. Gorz inclina-se para a primeira opção.
O segundo grupo de atividades, as atividades não-mercantis, Gorz subdivide em dois: o trabalho para si e as atividades autônomas. O trabalho para si é aquele cuja produção de valor de uso nós mesmos somos os artesãos e os únicos destinatários. As atividades autônomas são aquelas que não tem necessidade nem utilidade e cuja realização é seu fim em si mesmo[249]. Veremos agora o que Gorz entende por trabalho.
Notas
[220] Cf. SILVA, 1999b, p. 165.
[221] GORZ, 1988, p. 226.
[222] Cf. GORZ, 1988, p. 158.
[223] Cf. Ibid., p. 138-139.
[224] Ibid., p. 158-159.
[225] GORZ, 1988, p. 139.
[226] Ibid., p. 140. O grifo é do autor.
[227] GORZ, André. Capitalisme, socialisme, écologie (orientations, désorientations). Paris: Galilée, 1991, p. 111-113 apud GOLLAIN, 2000, p. 112.
[228] GORZ, 1988, p. 25-26. Os grifos são do autor.
[229] Cf. Id., 1997, p. 12 e 97.
[230] Cf. Ibid., p. 95.
[231] Cf. Ibid., p. 96.
[232] Ibid., p. 14. Os grifos são do autor.
[233] Id., 1988, p. 168.
[234] Cf. GORZ, 1988, p. 168.
[235] ARENDT, 1989, p. 100.
[236] Cf. Ibid., p. 113.
[237] WAGNER, 2000. p. 96.
[238] Ibid., p. 99.
[239] RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1968, p. 202 apud SILVA, 1995, p. 179.
[240] GOLLAIN, 2000, p. 117.
[241] Cf. GORZ, 1988, p. 168-170. Para expor o ridículo da lógica subjacente à ampliação ilimitada da remuneração, Gorz faz a seguinte pergunta: “Tenho eu direito a uma remuneração quando escovo os dentes três vezes ao dia e faço assim economias à Seguridade Social?”. Aqui p. 170.
[242] Ibid., p. 170-171.
[243] Cf. GORZ, 1988, p. 171.
[244] Cf. Ibid., 172.
[245] Cf. GORZ, loc. cit.
[246] Para esta parte cf. Ibid., p. 173-190.
[247] A respeito de uma certa cultura da produtividade que vai invadindo o conjunto dos setores antes excluídos e suas conseqüências, cf. AZNAR, Guy. Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo: Scritta, 1995, p. 63-73.
[248] GORZ, 1988, p. 186.
[249] Cf. Ibid., p. 191.
Datos para citar este artículo:
André Languer. (2004). 2.6 O emprego: isso que se "tem" ou não se "tem". Revista Vinculando. https://vinculando.org/brasil/conceito_trabalho/emprego_se_tem.html
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