Nos últimos vinte anos, o desemprego se tornou um verdadeiro drama praticamente universal: as taxas de desemprego explodiram mesmo em países onde alguns anos antes não atingiam nem 1%. As explicações que passaram a ser dadas e que, com o tempo, se tornaram dominantes, atribuíram a causa as inovações tecnológicas (a microeletrônica, as telecomunicações). No caso dos países pouco desenvolvidos, se acrescentou outro fator: a baixa qualificação do trabalhador. Em ambos os casos, a causa do desemprego seria independente das políticas adotadas: seria simplesmente o resultado do progresso (e quem é contra o progresso?). Como resultado do progresso, se exigem trabalhadores mais qualificados, o que coloca a responsabilidade do desemprego sobre os próprios trabalhadores – insuficientemente qualificados para os empregos que existem. Na verdade, estas explicações são justificativas para encobrir as verdadeiras causas do desemprego no mundo de hoje. O desemprego atual é resultado do processo de reestruturação produtiva e pelas políticas neoliberais que o legitimam e aprofundam. A globalização neoliberal vai contribuir para amplificar este processo.
O processo de reestruturação produtiva [2]
Um longo processo de inovações tecnológicas entra em sua culminância nos anos 70, a ponto de ser considerado por alguns autores como uma Terceira Revolução Industrial (Singer, 1998; Mattoso, 1995). A automação, a robótica e a microeletrônica vão invadir o universo fabril e de serviços (Antunes, 1995). A microeletrônica vai, entre outras coisas, permitir a flexibilização crescente dos processos de montagem, com uma individualização cada vez maior dos produtos, alterando a idéia anterior da produção massiva e seriada.
Introduzem-se novos métodos de organização e de gestão nas empresas, alterando profundamente as anteriores rotinas de produção, exigindo um trabalhador muito mais qualificado, capaz de dar conta de um conjunto de múltiplas tarefas (“polivalência”) (Mineiro, 1996). O fordismo, caracterizado pela produção em massa, pela linha de montagem e produtos mais homogêneos vai cedendo lugar ao “toyotismo”, onde o trabalhador opera com várias máquinas, onde só se produz o necessário e no melhor tempo e se atende a um mercado interno que solicita produtos diferenciados (Antunes, 1995).
Promovem-se mudanças nos contratos de trabalho: o contrato em tempo integral e por tempo indeterminado vem se reduzindo cada vez mais em favor do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado. O resultado é uma estrutura do mercado de trabalho em três círculos concêntricos, onde o centro é ocupado por empregados em tempo integral, fundamentais para o desenvolvimento da produção. Gozam de maior segurança no emprego e de vantagens. Este é um grupo que diminui cada vez mais. A periferia abrange dois grupos distintos: o primeiro é constituído por empregados em tempo integral, mas com habilidades facilmente disponíveis no mercado. Com menos acesso a oportunidades de carreira, este grupo tende a ser caracterizado por uma alta taxa de rotatividade. O segundo grupo periférico inclui empregados em tempo parcial, temporários, subcontratados, etc. Este grupo, que tem menos segurança no emprego, tende a crescer significativamente (Harvey, 1993).
Na Inglaterra, os ‘trabalhadores flexíveis’ aumentaram constantemente a partir de 1980, enquanto os empregos permanentes caíram. Em 1991, 40% do emprego neste país seria composto por empregos não regulares (flexiwork), em sua maioria sem pagar impostos e excluídos do sistema previdenciário contributivo (desemprego e benefícios enfermidade) (Mattoso, 1995). Mais ou menos no mesmo período, cerca de um terço dos novos empregos criados nos EUA estavam na categoria ‘temporário’ (Harvey, 1993). A forma mais estável de emprego – o contrato de trabalho com duração indeterminada – atingiu seu apogeu na França em 1975, concernindo 80% da população ativa, e caiu no início dos anos 90 a 65%. Segundo Castel, mais de dois terços das novas contratações anuais se fazem sob formas ditas “atípicas”. Os jovens são os mais atingidos, e as mulheres mais que os homens. Mas o fenômeno toca igualmente o que se poderia chamar o núcleo duro da força de trabalho, os homens de trinta a quarenta e nove anos: já em 1988, mais da metade dentre eles eram contratados sob um estatuto particular (Castel, 1998).
Para reduzirem custos e se tornarem mais competitivas, as empresas flexibilizaram a sua mão-de-obra, em dois níveis principais: a flexibilidade funcional ou interna e a flexibilidade numérica ou externa. A primeira é destinada ao núcleo estável e central que assume uma maior mobilidade, mais funções. A segunda, voltada a facilitar os ajustes de mão-de-obra as flutuações da demanda, é destinada a mão-de-obra periférica e externa (Mattoso, 1995: 92). Esta atinge os dois círculos periféricos já citados. É a “terceirização”: mantém-se na empresa aquele grupo de trabalhadores essencial a produção; tudo o que se refere a serviços não diretamente ligados a produção (limpeza, alimentação, condução, obras) e mesmo a produção de alguns elementos é entregue a outras empresas. Este é mais um fator que contribui para a precarização do emprego, porque o controle e a fiscalização sobre estas outras empresas é bem menor.
Rompeu-se também a relação salário-produtividade, característica do Welfare State: “Os salários reais médios dos trabalhadores industriais que subiram 30% nos anos 50 e 60 e 15% nos anos 70, caíram 11% nos anos 80 e estavam no final da década abaixo do nível de 1973” (Mattoso, 1995).
Além disso, para enfrentar o movimento sindical, e graças aos novos desenvolvimentos tecnológicos, as grandes empresas buscaram uma saída na deslocalização acelerada de suas operações. Com isso, elas dirigem suas plantas para países e regiões onde as condições lhes sejam mais favoráveis (leia-se: salários baixos, mão-de-obra barata, subsídios, isenções fiscais). Com esta capacidade, elas obrigam os trabalhadores dos países mais desenvolvidos a reduzirem suas reivindicações e obrigam os países de origem a alinharem suas legislações trabalhistas e de proteção social a quelas do Estado onde forem mais favoráveis a elas (isto é, onde a proteção for menor) (Chesnais, 1996: 306).
Passou a ser um objetivo primordial de qualquer empresa competitiva reduzir seus custos “enxugando” seus quadros (downsizing): demitir se tornou palavra de ordem generalizada. O resultado mais evidente do processo de reestruturação produtiva sobre o trabalho é o enorme aumento das taxas de desemprego em praticamente todo o mundo. A outra conseqüência é o crescimento da economia informal: “O rápido crescimento das economias “negras”, “informais” ou “subterrâneas” também tem sido documentado em todo o mundo capitalista avançado, levando alguns a detectar uma crescente convergência entre sistemas de trabalho “terceiromundistas” e capitalistas avançados” (Harvey, 1993: 145). O trabalho vai se tornando tão rarefeito que, para sobreviver, as pessoas acabam aceitando qualquer tipo de trabalho, qualquer tipo de remuneração (cf. Forrester, 1997).
"O que talvez seja mais inesperado é o modo como as novas tecnologias de produção e as novas formas coordenantes de organização permitiram o retorno dos sistemas de trabalho doméstico, familiar e paternalista, que Marx tendia a supor que sairiam do negócio ou seriam reduzidos a condições de exploração cruel e de esforço desumanizante a ponto de se tornarem intoleráveis sob o capitalismo avançado. O retorno da superexploração em Nova Iorque e Los Angeles, do trabalho em casa e do "teletransporte", bem como o enorme crescimento das práticas de trabalho do setor informal por todo o mundo capitalista avançado, representa de fato uma visão bem sombria da história supostamente progressista do capitalismo" (Harvey, 1993: 175).
As políticas neoliberais e o desemprego no Brasil
O desemprego no Brasil passou a se tornar dramático a partir da introdução das políticas neoliberais em 1990. O governo Collor começou a pô-las em prática, mas foi o governo Fernando Henrique Cardoso quem efetivamente as implementou no país. O desemprego teve um salto impressionante:
Região Metropolitana de São Paulo – Taxa de desemprego total (em porcentagem)
1990 | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996 | 1997 | 1998 | 1999 | 2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 |
10,3 | 11,7 | 15,2 | 14,6 | 14,2 | 13,2 | 15,1 | 16,0 | 18,2 | 19,3 | 17,6 | 17,6 | 19,0 | 19,9 | 20,0* |
Fonte: DIEESE/SEADE. *Média dos quatro primeiros meses.
Obs.: o desemprego é ainda maior em Salvador e Recife.
Alguns autores se debruçaram sobre as causas do crescimento ininterrupto do desemprego neste período (cf. Mattoso, 1999a; 1999b; Pochmann, 2001) . Os principais fatores apontados são: a abertura econômica e financeira indiscriminada, os juros elevados, o alto superávit primário e a baixa taxa de investimento por parte do Estado. A abertura comercial permitiu a entrada de produtos estrangeiros com baixa taxa de proteção, o que levou a quebra de inúmeras
e
mpresas que não suportaram a concorrência. Empresas multinacionais com melhor tecnologia e com mais recursos derrubaram sem grande dificuldade empresas nacionais do mesmo ramo. E produtos de países com baixa remuneração dos trabalhadores chegavam com preços menores que os praticados aqui, devido a redução das tarifas. Enquanto isso, os países desenvolvidos continuaram protegendo sua própria produção com altas tarifas. Esta abertura foi o primeiro fator a demolir uma parte do parque produtivo nacional, gerando uma forte alta do desemprego.
Os juros elevados servem para atrair capitais externos e para controlar a inflação. Elevados, eles comprometem o orçamento das empresas – que não suportam o pagamento dos empréstimos feitos junto aos bancos. O resultado é conhecido de todos: empresas vão a falência e muitos empreendimentos novos fecham em menos de um ano por toda parte. Empresas de renome desapareceram e vultosos recursos foram despendidos inutilmente para gerar negócios que não tinham condições objetivas para sobreviver. Acabaram nas mãos dos bancos[3]. A quebradeira generalizada – que permanece até hoje – é um segundo fator do desemprego.
O terceiro fator foi o tipo de política anti-inflacionária adotada. Segundo seus mentores, aumento de salários provoca inflação. Conseqüentemente, para manter controlada a inflação, é preciso manter controlados os salários: salários baixos levam a baixo consumo e, portanto, obrigam os preços a baixar (ou não subir). A partir deste postulado, montou-se a política da desvalorização real do salário-mínimo a que estamos assistindo. Segundo o DIEESE, atribuindo-se o valor 100 ao salário-mínimo de 1940, ele passa de um valor real de 40 em 1989 para oscilar entre 24 e 30 durante toda a década de 90. Em outros termos, o valor real do salário-mínimo passou a ser, no máximo, 30% do que era em 1940.
Com a população consumindo menos, o comércio se reduz; o comércio em queda provoca demissões; e as indústrias têm de reduzir sua produção; em conseqüência, mais demissões. Pessoas desempregadas têm menos renda: generaliza-se a queda de renda, o desemprego cresce. É o círculo vicioso do baixo crescimento. Ora, o Brasil cresceu na década de 90 a uma taxa (1,8%) que não chega a metade da sua média no século XX (4,8%), uma taxa de crescimento incapaz de fornecer emprego sequer para os jovens que anualmente chegam ao mercado de trabalho (em torno de 1 milhão e 500 mil) (cf. tabela em anexo).
Na lógica neoliberal de redução do Estado e de priorização do pagamento das dívidas, o Estado aumentou o desembolso dos juros das dívidas e reduziu sua taxa de investimento, o que significou redução dos investimentos em infra-estrutura[4]. Em conseqüência, setores normalmente geradores de emprego foram seriamente atingidos. A construção civil, por exemplo, que sempre é o setor que mais gera empregos, tem, ao contrário, perdido empregos nos últimos anos.
Esta política econômica já é suficiente para promover o aumento do desemprego. Mas o estrago não se limitou a este campo: o Estado contribuiu para o processo de reestruturação produtiva, reduzindo os direitos dos trabalhadores (“flexibilização”) e favorecendo o poder das empresas. A exigência de carteira assinada (isto é, encargos sociais, previdência) foi perdendo terreno. De sorte que, hoje, mais da metade da população ocupada o é sem carteira assinada. E é raro que esta prática tenha conseqüências legais para os patrões. Do mesmo modo, a fiscalização passou a ser mais compreensiva para uma série de faltas: a jornada de trabalho muitas vezes se estende bem além do horário normal e freqüentemente não se pagam as horas-extras. O excesso de desempregados permite ao patrão toda sorte de liberalidades.
É verdade que a introdução de novas tecnologias levou a forte desemprego em determinados setores. É o caso do setor bancário, por exemplo, onde a automação acabou com muitas funções antes preenchidas por funcionários. É o caso também da indústria automobilística, onde a robótica reduziu em muito o número de operários. Mas há outros setores onde as novas tecnologias não reduzem, mas geram novos empregos: é o caso da saúde e da educação. A introdução de um novo aparelho exige um novo especialista (ex.: o tomógrafo) e emprego em torno dele. Na escola, a introdução dos computadores implica a criação de cursos de informática, além de técnicos.
Contrariamente ao que as autoridades públicas têm afirmado, o desemprego não afeta apenas o trabalhador de baixa qualificação. As pesquisas recentes mostram que o desemprego está crescendo proporcionalmente mais entre os que têm maior escolaridade e que os empregos que estão sendo gerados são justamente aqueles que exigem baixa qualificação: “Entre 1989 e 1998, o desemprego cresceu relativamente mais entre os homens, de mais idade (40 anos ou mais), cônjuges e para os de maior escolaridade” (Mattoso, 1999: 14). O desemprego aumentou 124% para os que tinham mais de 11 anos de escolaridade e cresceu 111% entre os que tinham menos de 5 anos (id., ibid.). As pesquisas de Pochmann chegaram a mesma conclusão: “Durante o período de 1992 a 2001, o número de ocupados com curso superior cresceu 62%, contra uma expansão dos desempregados universitários de 120,7% (…)” (2003: 6). A maior quantidade de empregos que têm sido gerados nos últimos anos são os precários: até 3 salários-mínimos (2004: 4).
Em suma, o desemprego no Brasil é fundamentalmente resultado do baixo crescimento econômico, conseqüência das políticas adotadas – reforçaremos este argumento mais adiante, com o exemplo internacional. Um crescimento econômico de 5% ao ano no Brasil geraria empregos suficientes para todos os jovens que ingressam no mercado de trabalho. O que bloqueia o crescimento são os juros altos e o elevado superávit primário – que impede a expansão das empresas e o investimento nos setores necessários para gerar desenvolvimento.
[1] Este texto é um desenvolvimento do item “O desemprego” do livro O Desmonte da nação em dados (Lesbaupin e Mineiro, 2002: 77-83).
[2] Este item é uma atualização do item respectivo do meu livro Poder local x exclusão social (2000).
[3] Pesquisa do SEBRAE mostrou que, das 1,39 milhão de empresas abertas entre 2000 e 2002, mais da metade (56%) faliram no período, resultando no fechamento de 2,4 milhões de postos de trabalho. Destas, metade fecharam com menos de dois anos de existência (O Globo, 12/08/2004).
[4] Tanto produtiva – abastecimento, transportes, energia, telecomunicações – quanto social – habitação popular, saneamento básico, saúde, educação.
Datos para citar este artículo:
Ivo Lesbaupin. (2004). A questão do trabalho nos tempos atuais (1). Revista Vinculando, 2(2). https://vinculando.org/brasil/trabalho_atual.html
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